DR.  MARCELLO  MATHIAS

Marcello Mathias:
"O testemunho que fica é uma forma de justiça"

por: Francisco José Viegas

Correspondência Marcello Mathias/Salazar (1947-1968)
Prefácio de Veríssimo Serrão
Difel, 1984

"Não lhe escrevo hoje sobre assuntos políticos ou de importância, mas sobre pequenas coisas", escrevia Oliveira Salazar a Marcello Mathias, embaixador português em Paris. Pequenas coisas muitas vezes surgem ao longo deste volume de correspondência entre dois homens, recentemente editado pela Difel e organizado por Maria José Vaz Pinto. O Cadillac cedido por Salazar, o Verde Gaio em Paris, o problema africano, os Estados Unidos e Portugal - estas cartas entrarão, desde hoje, nos documentos mais importantes para a História portuguesa que vai de 1947 a 1968.

Neste volume de correspondência pode o leitor encontrar sinais de uma amizade entre dois homens que, de um modo ou de outro, marcaram a história política dos últimos cinquenta anos. Mas não só: na escrita fluida, inteligente e clara de Marcello Mathias, aí, estão os sinais do que foi parte da presença deste homem na política externa do País, na vida cultural, o lugar que ocupou na determinação dos destinos da nação. Não importa, hoje, só julgar (ou então comece o leitor por ler este volume). Interessa, com a distância que cada um quiser ou souber, evitar o mau julgamento. Felizmente, hoje começamos a ter acesso a alguns dos documentos que nos permitem entender o que se passou. Não queira o leitor ser juiz.

Antes de mais, gostaria de agradecer a Maria José Vaz Pinto, responsável pela coordenação da Correspondência, todo o auxílio prestado durante a realização desta entrevista. Sem a sua colaboração este trabalho não seria possível.

P. - Senhor Embaixador: que eu saiba, este volume de correspondência não constitui, exactamente, uma primeira experiência editorial. Em 1943 o Senhor Embaixador publicou uma colectânea de poemas (no Brasil) a que, curiosamente, o presidente francês, Auriol, se referia em 1947, quando o Senhor Embaixador lhe entregou as suas credenciais como representante diplomático português. Depois, o sucesso de "Lusco-Fusco", em 1973, o Prémio Ricardo Malheiros, a edição francesa e o Prémio da Academia Francesa em 1976. O Senhor Embaixador, com a sua idade, atravessou todo um período áureo da política portuguesa, assistiu ao golpe militar do 25 de Abril. Como situa, no curso da sua vida, tanto as experiências literárias como este volume de correspondência?

Livro de poesiaR. - Uma mesma linha liga o livro de poemas que publiquei em 1943, no Brasil, e o romance Lusco-Fusco, escrito trinta anos mais tarde. Essa linha é a angústia perante a fatalidade da morte, a humildade e o cepticismo a que essa conclusão conduz em relação às paixões e intolerâncias que habitualmente dominam os homens. Quanto ao presidente Auriol ter feito referência àquela obra, deve ter-se passado o seguinte: os Chefes de Estado, ou as personalidades que ocupam altos cargos na vida pública de um país, têm frequentemente que receber entidades estrangeiras a que, por dever de ofício e de cortesia, procuram dizer palavras amáveis. O chefe do protocolo da Presidência da República Francesa era, ao tempo, o ministro plenipotenciário Jacques Dumaine que estivera em posto no Rio de Janeiro e com quem eu ali estabelecera relações afectuosas. Dumaine estava por isso ao facto da publicação de Doze sonetos e uma canção, editados, como disse, no Rio, e terá certamente sugerido ao presidente Auriol para os mencionar, quando da apresentação das minhas credenciais.
No que respeita ao romance Lusco-Fusco, o próprio título define a atmosfera em que decorre a sua acção: aquela fase intermédia e equívoca em que as imagens perdem nitidez e se esbatem de forma propícia às incertezas e ao sonho. Esse romance é ainda uma manifestação da dúvida e da inquietação que sempre existiram em mim sobre o sentido da vida e o valor das contingências humanas. Pablo La Noche incarna numa certa medida a incapacidade dos homens aceitarem a sua própria identidade, o conteúdo da sua vida, na tensão constante entre o que são e o que gostariam de ser, no desejo de ser um outro sem saber bem qual ou quem.

P. - Só uma pequena questão: que tem Lusco-Fusco a ver com a sua actividade no domínio político desde a década de 40?

Lusco-fusco, 1ª ediçãoR. - O romance Lusco-Fusco nada tem a ver com a minha carreira diplomática e podê-lo-ia porventura ter escrito se tivesse continuado na advocacia ou na magistratura. Na altura em que foi elaborado eu estava prestes a terminar as minhas funções diplomáticas em Paris. Não tinha contactos com o mundo das letras em Portugal e julguei preferível publicar o romance sob pseudónimo, por forma a não implicar a personalidade do funcionário nas possíveis críticas que a obra pudesse suscitar. Pablo La Noche, como se depreende do próprio texto do romance, é uma figura imaginária mas constantemente ligada aos acontecimentos da minha vida ou daqueles com quem tive íntimo contacto. Aos setenta anos, eu decanto uma série de experiências, de acontecimentos, de vidas, em que tomei parte directa ou indirecta, activa ou passivamente, e que enriqueceram a minha imaginação e o meu espírito. Tendo vivido o bastante para sentir a vacuidade da falta de horizontes e de perspectivas, no lusco-fusco da vida, nesse entardecer simbólico, as coisas, os factos e os sentimentos esbatem-se na imprecisão do mundo de sombras que se avizinha, acentuando o desconhecimento dos homens acerca daquilo que é essencial, que é a morte. O que é que ela significa? É ou não um ponto final? Os homens, na sua fragilidade e vulnerabilidade, tentam escapar à morte de muitas maneiras. O romance não é uma espécie de calendário ou de folhetim registando, no tempo e no espaço, uma acumulação de experiências de vida. Tem muito mais força a trama sub-terrânea dessa mesma vida, as atitudes que o homem teve perante as coisas essenciais. Há uma linha de continuidade no sentimento que a certeza da morte suscita no autor de Doze Sonetos e uma canção, e que transparece, bem mais tarde, no romance Lusco-Fusco. O mesmo homem continua a levar consigo o seu problema, a despeito do mundo exterior ter mudado, da paisagem não ser o trópico ou ser ainda o trópico, ser o oceano ou a montanha. Para lá das suas andanças, da sua peregrinação pelo mundo e dos diversos episódios desse itinerário, ele encontra-se sozinho.

P. - O que é que o levou a escrever o romance no momento em que o fez?

R. - Escreveu o meu amigo Domingos Monteiro, num dos sonetos da sua juventude: «Sabe lá uma fonte onde nasce água, qual a razão porque a água está a correr?». Sabe lá um poeta porque é que escreveu versos ou um escritor porque escreveu o romance? O importante é que os outros, ao lerem esse romance sintam que há ali um eco do que eles próprios alguma vez sentiram. Porque o que se limita a descrever paisagens pode ser um grande romancista, mas então prefiro o pintor. Num determinado momento uma situação emocional, um estímulo afectivo, desencadeiam um processo que corresponde à própria evolução íntima do autor. Através de todas estas manifestações, em verso ou em prosa, no plano da ficção ou no plano político e histórico, como é o caso da recente publicação da "Correspondência", há sempre um traço de continuidade, o da consciência que um homem tem da solidão do seu destino.

Uma forma de interpretar a imagem do País

P. - No caso da publicação da "Correspondência" há também o testemunho que vem apresentar da sua inserção numa determinada ordem, de uma forma de interpretar a imagem do seu país e de o servir…

R. - Há sempre a mesma coerência. A angústia da morte, ou seja, da inutilidade da vida, a certa altura domina os homens, e cada um, por caminhos diferentes que lhe são próprios, busca afirmar a sua presença. Cada ser humano procura à sua maneira encontrar uma forma de eternidade, na ilusão de que as suas pegadas podem talvez durar mais tempo na areia e que não é imediatamente que vem o mar e apaga tudo. O desejo de trazer um testemunho sobre os acontecimentos vividos e sobre os homens que conhecemos envolve aspectos complexos. Por um lado, a crença de que o testemunho que fica é uma forma de justiça para com aqueles que respeitámos e a quem quisemos bem; por outro lado, a esperança de que o nosso depoimento pode vir a ser de alguma utilidade, como ponto de referência, para as gerações vindouras. É esse o sentido do texto do meu amigo Louis Joxe que eu transcrevo na introdução e é neste contexto que se situa a presente publicação da correspondência. Tendo sido jovem numa época em que era difícil ter orgulho em ser português, dadas as circunstâncias que eu descrevo no preâmbulo, compreende-se como fui solidário numa evolução política que levou à consolidação da estabilidade pública, ao equilíbrio financeiro e à defesa da intangibilidade das fronteiras e da integridade do território nacional, etc., etc., embora tudo isto parecesse insignificante aos olhos de certas naturezas positivas que de antemão condenavam tais esforços e em quem os fanatismos partidários eram superiores à visão objectiva do conjunto dos interesses nacionais. A verdade é que eu acreditei nisso, como também acreditei que valia a pena a publicação deste volume com os documentos que contém. Sabendo, no entanto, que num domínio em que as paixões são tantas, só muito mais tarde, decantados pelo tempo, é que se poderá dar algum valor ao depoimento que eu pretendi prestar.

Marcello Mathias"Admirei em Salazar a subtileza de espírito"

P. - Como vê o papel de Oliveira Salazar no conjunto da história política de Portugal neste século?

R. - É cedo demais para que uma tal pergunta possa ser respondida. Outras figuras houve, na história de Portugal, muito anteriores a Salazar, sobre as quais ainda não há uma visão pacificamente aceite. Por um conjunto de circunstâncias fortuitas, eu assisti ao discurso que Salazar proferiu quando tomou posse como Ministro das Finanças. Eu tinha, então, vinte e poucos anos e era um espectador entre outros, perdido na massa anónima. Havia um ambiente de expectativa em torno de Salazar, mas também alguma incredulidade de que conseguisse levar a cabo o programa que se propunha. Salazar, aos olhos de todos os que estávamos cansados da desordem e da anarquia, encarnou desde logo um esforço sério de renovação nacional. A iminência da bancarrota era então um tema recorrente de conversa, e quando se passavam as fronteiras nenhum banco ou cambista aceitava as notas portuguesas. Salazar veio provar que não recorrendo a créditos alheios, contando apenas com o que era nacional, com o espírito de sacrifício da nação e com uma grande probidade da administração pública, mediante a concepção parcimoniosa das despesas públicas, podia chegar-se a esse milagre em que ninguém acreditava no meu tempo: o equilíbrio do orçamento, a criação de uma moeda forte e livremente negociável no estrangeiro. Tendo compreendido que não bastava equilibrar orçamentos, considerou que era preciso também reestruturar a organização política do País. Consciente da tendência nacional para a indisciplina, Salazar sabia que dificilmente se encontraria um denominador comum que conseguisse reunir as capacidades nacionais para sairmos da situação em que nos encontrávamos. O que mais admirei em Salazar, no começo, foi a sua política financeira e o restabelecimento da credibilidade do Estado. Mais tarde, foi sobretudo no campo da política externa que me foi dado apreciar as suas qualidades de estadista, a probidade dos seus métodos de trabalho, o seu senso político, a sua lucidez quanto aos problemas e quanto aos homens. Só lhe posso repetir o que algures escrevi: Se em Salazar respeitei e estimei o homem, mais ainda porventura admirei a obra.

P. - Através do volume de correspondência com Oliveira Salazar entenderá o leitor que entre o senhor embaixador e o antigo Presidente do Conselho existia, sinceramente, mútua consideração e amizade. O Dr. Salazar pedia frequentemente o seu conselho sobre os mais variados assuntos, quer de ordem política, quer de ordem estritamente pessoal. Quais eram, ao certo, os sentimentos que dominavam essa relação entre os dois homens de Estado?

R. - O que nos ligava para lá de qualquer sentimento pessoal ou diferenças de temperamento era a tarefa comum a que ambos estávamos ligados e dedicados, ou seja, servir os interesses superiores de Portugal. Existiam entre nós relações de deferência mútua e de uma certa reserva, o que estava no carácter de ambos. Admirei em Salazar a sua subtileza de espírito e a sua capacidade de ironia. Salazar era muito observador e tinha um juízo claro acerca das pessoas e das situações. Dentro da rotina do seu dia de trabalho, costumava a seguir ao almoço passear, com passo rápido, nas áleas dos jardins de S. Bento, antes de se ir deitar para uma espécie de sesta. Contava ele que uma vez estendido na cama não dormia, mas que na obscuridade que lhe descansava a vista - Salazar sofria muito dos olhos - rememorava os principais acontecimentos do dia, as conversas que tinha tido, os relatórios que lera, etc. Reflectia, ponderava as hipóteses. Salazar era a negação de um repentista. Nele, todas as decisões vinham coadas através da reflexão, da ponderação e do estudo.

Salazar e Franco Nogueira

P. - Ainda a respeito da personalidade de Oliveira Salazar, qual é a opinião do senhor embaixador sobre a biografia que do estadista traça Franco Nogueira?

R. - O Dr. Franco Nogueira foi dos funcionários que eu conhecia no Ministério dos Negócios Estrangeiros aquele que pela sua capacidade dialéctica, total isenção de vaidades, determinação patriótica e grande dedicação aos problemas nacionais me pareceu ser o mais apto para assumir a chefia dos Negócios Estrangeiros quando eu saí. Considero como tendo sido muito auspiciosa a indicação que então dei a Salazar de me fazer substituir pelo embaixador Franco Nogueira. Li com o maior interesse os vários volumes que Franco Nogueira tem vindo a publicar sobre Salazar. Esses volumes representam uma contribuição de enorme valor para o conhecimento da personalidade de Salazar e da sua obra. Aí são coligidos uma série de documentos e testemunhos que são indispensáveis elementos de consulta para a reconstituição deste período histórico.

P. - Qual o papel que o senhor embaixador assumiu quando das campanhas realizadas contra Portugal na ONU, em 1962? Na verdade, a França optou por uma consequente abstenção, ao contrário dos Estados Unidos que votaram contra Portugal…

R. - O grande drama que nós tivemos foi a influência norte-americana no nosso século. A América é uma espécie de gigante cego: como grande potência não tem uma estável orientação na política externa, uma vez que esta é radicalmente influenciada pelas alterações da política interna. Na política externa americana pesam de modo grave as eleições presidenciais e as flutuações do eleitorado. Na verdade, perante a oposição que encontrávamos por parte dos países anglo-saxónicos e escandinavos à nossa política ultramarina, assumiu especial relevo o apoio que nos foi dado pela França a partir de 1961, não esquecendo que a Espanha e a África do Sul votaram a nosso favor.

P. - Crê o senhor embaixador que a personalidade de Oliveira Salazar não é, ainda hoje, julgada com serenidade e isenção?

R. - Certamente que não. Quando certas figuras da nossa história, como o Marquês de Pombal ou o rei D. João VI, continuam a ser contestadas ou exaltadas consoante as correntes de opinião, não é de estranhar que Salazar seja objecto de juízos apaixonados e contraditórios.

P. - Como viveu os sucessos e insucessos da política interna e externa portuguesa quer durante o período anterior a 1974 quer no que se lhe seguiu?

R. - Antes de 1974… do que foi a minha vida encontra nesta obra, na Correspondência, alguns ecos. Fiz tudo o que pude para defender os interesses do País, pondo todas as qualidades ou defeitos que eventualmente possuísse, ao serviço da minha acção, quer em França enquanto embaixador, quer em Portugal como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois de 1974 não intervim em mais coisa alguma. Faço os melhores votos que os homens que dirigem a política portuguesa recebam a inspiração nacional, patriótica, para que defendam os nossos interesses da melhor maneira. Tenho observado que há uma verdadeira revolução semântica e que as mesmas palavras já não significam o mesmo. Não se podem usar as mesmas palavras dando-lhes a carga sentimental ou emocional que tinham no meu tempo. Que cada um sirva o País na medida das suas capacidades e que haja novas gerações que, com tacto e com inteligência, salvem a cultura portuguesa e a língua portuguesa nos territórios onde elas constituem, ainda, um testemunho vivo do nosso passado, e portanto, uma garantia do nosso futuro.

Publicado em: "JORNAL DE LETRAS"

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