POETAS  DA  NOSSA  TERRA

MARCELLO MATHIAS

OFERENDA

u dou estes meus versos à humildade
Dos que são meus irmãos no insatisfeito anseio;
Aos poetas que não ousam cantar,
E a esses pintores cujo mais belo quadro,
Entrevisto num sonho,
É sempre o que jamais podem pintar;
Aos que sentem na alma os ritmos estranhos
Da partitura que não sabem escrever;
E aos que, vivendo a Vida, em cada instante
Pensam que hão-de morrer;
Aos que consigo trazem a ternura
E o generoso anseio de se dar,
Mas que ninguém quis aceitar;
E aos homens e mulheres que morrerão
Obscuros como eu,
Porque nunca puderam encontrar
Sua íntima expressão;
Aos soldados que não foram heróis
Só porque nunca combateram;
E aos soldados vencidos nas batalhas,
Mais tristes porque nelas não morreram;
E aos que adoram crianças, sem ter filhos,
E a todos,
Todos os que, por diferentes trilhos,
Levam em segredo e quase a medo,
Dentro de si,
Um mundo destroçado de ilusões desfeitas,
Ou, como eu,
Um infinito de Capelas Imperfeitas.

QUIMERA DA IDEIA NOVA

oite, sombria Noite, fria e vã,
Não mais caminharemos lado a lado!
Dos afanosos duendes já o afã
De sombras e de medos é findado!

Sou noivo, vou casar! É a Manhã
A noiva que escolhi no meu noivado...
- E que linda ela é, virgem pagã
Tendo o Sol a servir-lhe de toucado!

Sou noivo, vou casar! Às minhas bodas
Hão-de a brilhar vir as estrelas todas
E as rendas serão espuma do Mar!

... E o Sol, de ciumento empalidece,
Que a Manhã nos meus lábios amanhece,
Porque a Manhã comigo anda a noivar!

NO FIM DA ESTRADA

ais para além dos rios coleantes,
Desse verde pinhal e das crianças
Dançando no jardim aquelas danças
Que eu também já dancei; e dos distantes

Horizontes; das searas ondulantes;
Dos pequenos pastores de ovelhas mansas,
Com seus altos cajados como lanças;
No fim da estrada... aonde vão viandantes

Que não conheço e não sei donde vêm;
Para além do sorriso e da quimera
E dos versos dos Poetas. Mais além...

Mais só que a solidão - no desconforto
Da muda imensidade que me espera -
Meu solitário coração jaz morto.

Poemas incluídos no livro: "Doze Sonetos e uma Canção", de
Marcello Mathias, 1943
Lidos por Vivaldo Quaresma, 2019

COLABORAÇÃO:

Se desejar colaborar no projecto de sonorização dos poemas de Marcello Mathias constantes nesta página e não esperar qualquer tipo de retribuição ou recompensa, para além da divulgação óbvia do seu nome, por favor envie-nos o seu trabalho gravado no formato MP3 para aqui o publicarmos.

OUTONO

omo quem, no regresso duma escura
E árida jornada, ansioso espera
Rever o sol e as flores da primavera,
Assim busquei da infância a imagem pura;

Com versos quis traçar a iluminura
Dessa ingénua gravura do que eu era,
Quis fazer ressurgir toda a ternura
Das graças infantis que já esquecera ...

Mas no caleidoscópio dos meus versos
Os vidros coloridos e diversos
Das infantis polícromas imagens,

Não se enfeitam de graças infantis,
Nem do sol, nem das flores primaveris ...
São tristes, outonais, frias paisagens.

VIDA E MORTE

ara onde vou? Que luz guia meus passos?
Onde afinal termina esta jornada?
Caminho? - Ou não sou eu, mas sim a estrada
Alada a caminhar pelos espaços?

É minha a Dor... ou é a Dor sonhada?
São meus os sofrimentos e cansaços?
- Só a Morte responde com seus braços...
A Vida não nos dá resposta a nada!

Ó Morte, irmã da Noite e da cegueira,
Frio da terra e frémito duma asa,
A única vitória verdadeira,

Exílio... no regresso à própria casa!
Ventura e desventura derradeira,
Cinza dum fogo... e já incêndio em brasa!...

REGRESSO

(Nova parábola do filho pródigo)

u fiz outrora um grande desatino:
Troquei por longes terras indiferentes
O céu azul, o verde mar e as gentes
Das terras em que andei quando menino.

Quando voltei emudecera o sino,
Tinham secado as fontes e as sementes,
Andorinhas e flores todas ausentes ...
- Só comigo o meu trágico destino!

Outros homens mudaram as estradas
Por onde caminhei na minha infância ...
Onde estão os silvedos com amoras?

Os cachos de uvas negras das latadas?
A cerejeira em flor? Tudo é distância ...
Coração peregrino por quem choras?

Jardim dos poetas, Benfeita

VoltarSubir