A  VIDA  DA  NOSSA  GENTE

O "PÉSSIMO" DA BENFEITA

O Péssimo da BenfeitaAntónio Francisco Nunes, de seu nome, é, afinal, um óptimo trabalhador!

Do Péssimo da Benfeita (António Francisco Nunes, de seu nome - Péssimo é simplesmente um apelido) se podia dizer o que Eça de Queirós disse do seu camarada Jacinto: «que foi sempre mais resistente e são que um pinheiro bravo, crescido nas dunas, que nunca teve sarampo nem lombrigas, que nunca se repastou de Schopenhauer ou de outros pessimistas menores, que nunca bocejou, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos sobre as faces como se nelas só palpasse palidez e ruína».

Porquê? É que o Péssimo, nado e criado em uma casa pobrezinha da Benfeita, desde cedo amou a luz, a vida, o trabalho, a alegria. Desde cedo, agarrado ao naco de broa, subiu as íngremes ladeiras dos montes da sua terra para encher os olhos das esperanças douradas dos horizontes longínquos.

— E se eu me aventurasse e fosse por essas terras adiante...?

Chegou, um dia, a hora da decisão. Temos aqui diante de nós esse homem trabalhador e bom. Estava na rua com um negócio de centeios entre mãos. Puxámo-lo por um braço:

— Amigo Péssimo, tem de ir contar-nos alguns passos da sua vida.

O Péssimo tentou resistir. Depois, mal resignado, concedeu:

— Pois vamos lá. Mas olhe que o meu tempo é muito pouco... Ainda tenho de ir para a Benfeita…

O Péssimo tem os seus bons 60 anos. Nunca teve férias na sua vida. Deixou encanecer os cabelos nessas caminhadas para a cidade. Isso ainda ele suportava. Mal se resignou, porém, à teimosa insistência para fugirem, e deixarem a descoberto a calva disfarçada.
Foram-se os cabelos mas a juventude ficou. Aquela juventude que venceu obstáculos e esteve presente em todas as horas amargas para dizer que não há mal que sempre dure.
Os olhos buliçosos de António Francisco Nunes são dois pontos de interrogação:

— Mas, afinal, que venho eu aqui fazer? Que quer de mim este individuo?

Começamos, pois, por lhe perguntar:

— Há quantos anos anda o meu amigo nesta "carreira" Benfeita-Coimbra?
— Comecei em 1912… Já lhe pode fazer as contas.
— São, portanto, 44 anos...
— Sim, senhor, 44 anos, tal e qual...
— Que fazia antes de começar a "carreira" para Coimbra?
— Que fazia? Olhe: andava ao dia fora a ganhar 6 vinténs... até que um dia...
— Até que um dia agarrou em si e marchou para Coimbra...
— Exactamente. Comecei com um carro de bois...
— Um carro de bois?
— Sim, senhor... um carro de bois, durante uma boa dúzia de anos.
— Quantos dias demorava?
— Eu lhe digo: saía segunda-feira à tarde, passava por Coja, Carvalhas, Ponte da Mucela, Ceira e Coimbra, onde chegava na quinta-feira de manhã. Regressava depois na quinta-feira à tarde e chegava no domingo de manhã à Benfeita.
— E que é que transportava?
— Tudo o que era preciso. Para lá, geralmente, carvão. Para cá, mercadoria de toda a espécie para Coja, Arganil, Mouronho, Meda de Mouros, Benfeita, etc., etc. E note que ia e vinha sempre sozinho…
— Nunca teve outro meio de vida?
— Apenas interrompi para cumprir o serviço militar, como soldado, em Moçambique, na guerra de 1914-1918. Regressei em 1919, recomeçando logo o meu trabalho.
— Sempre com carro de bois?
— Pouco depois da minha vinda de Moçambique, consegui o que tanto desejava: comprar uma galera e três mulas... Entretanto, estabeleci-me na Benfeita, mas nunca, nunca deixei de fazer a carreira para Coimbra. Com a galera, saía da Benfeita às segundas-feiras, chegava a Coimbra às terças. Às terças saía e às quartas chegava e casa. lsto até que em 1953...
— Comprou a furgoneta que ainda tem…
— Exactamente. Agora faço o serviço com ela, o que é mais prático, mais cómodo e mais moderno...
— Tem "carta"?
— Tenho "carta", mas é da galera. Da furgoneta, não. Vai sempre comigo um filho "encartado".
— Teve horas más nessas viagens?

O Péssimo enche a sala com uma gargalhada sonora, franca e exclama:

— Oh! Jesus! Quantas e quantas vezes! Isso nem é bom recordar! Dormir na rua, no esterco, nas manjedouras... Andar de dia e de noite... Morreram-me 12 mulas...

Há um momento de silêncio evocativo. O bom homem arranca pormenores ao fundo da sua vida de trabalho...

— Olhe, de uma vez, tinha uma mula doente, pedi outra emprestada na Benfeita. Lá fomos indo, indo, e, ao chegar à Raiva, mesmo ao pé da capelinha, a mula morreu...

E explicando:

— Sim, ao chegar à Raiva, porque eu depois dei em fazer o percurso por Catraia dos Poços, Raiva, Penacova, Portela e Coimbra. Era estrada mais curta... melhores negócios, sabe...
— Nunca foi assaltado pelos ladrões?
— Nada, não senhor, nunca!
— Diga-me agora: porque lhe chamam Péssimo?
— Olhe, minha mãe tinha um tio a quem chamavam só o Péssimo, o Péssimo… Eu era parecido com ele, e como tenho esta genica... é dai que vem o nome. Toda a gente me conhece assim... Não levo a mal.

Antes de sair, o Péssimo ainda deu mais algumas explicações:

— Graças a Deus, tenho alguma coisa, à custa só do meu trabalho. Olhe que eu não tinha nada. Vivi numa casa de renda durante 12 anos e chegámos a dormir 5 irmãos numa cama. Nunca fui a nenhuma esquadra, a nenhum tribunal, nunca fui preso... Gosto é de respeitar a todos, para que todos me respeitem a mim...
— Parece-lhe que a Benfeita tem progredido?
— Muito, muito. Quando a minha terra não tinha estrada, era um castigo. Do Pisão para cima ia tudo em cargas de mula. Depois, com o progresso, tudo se modificou.

O Péssimo olhou para as horas. Despedimo-nos.

— É que isto - disse-nos ele já na rua - não há tempo a perder. É certo que os meus filhos: o Horácio, o Adelino, o Nunes e o Mário, me ajudaram muito. Mas o trabalhinho vai chegando para todos.

Deixou atrás de si um rasto de optimismo confiante. A sua última palavra, foi esta:

— Qualquer dia conversaremos com mais vagar...

Escondeu na furgoneta o seu riso franco, optimista, e, já com o carro em andamento, ainda pôs o braço fora para nos dizer adeus.

A COMARCA DE ARGANIL
01/01/1957

O Péssimo e a mulherAntónio Francisco Nunes, de apelido "Péssimo", era filho de José Francisco Nunes e de Maria do Nascimento. Nasceu na Benfeita em 16/11/1894 e casou com Maria da Assunção de Jesus, de quem teve 7 filhos que também viriam a adoptar o mesmo apelido como nome de família:

Adelino Francisco Nunes (20/09/1920-08/03/2009), que viria a casar com Patrocínia Dias;
Alberto Francisco Nunes (12/03/1925-13/02/2017), que casou com Maria Alice da Conceição Quaresma;
Maria Adelina d'Assunção (17/09/1928), que se casaria com César do Rosário Gonçalves Prata;
Lucinda de Assunção Nunes Dias (02/07/1930-03/04/2021), que casou com Alberto Bernardo Dias;
Horácio Simões Nunes (25/02/1933-16/02/2009), que viria a casar com Fernanda das Neves Victória;
António de Jesus Francisco Nunes (27/01/1935-10/10/2015), que casou com Maria Alice das Neves Ventura e
Mário Francisco Nunes (28/02/1937), que casou com Maria Santos da Costa Nunes.

Combateu no norte de Moçambique, no auge da Primeira Guerra Mundial, integrado no Regimento de Infantaria nº 23, para onde partiu, de Lisboa, em 03/06/1916, na companhia do amigo Firmino "Ferreiro", entre outros, de quem mais tarde viria a ser cunhado, e onde experimentaram o amargo sabor de uma derrota de má memória, das forças expedicionárias portuguesas, impostas pelas tropas da colónia alemã que daria origem à Tanzânia.

Iniciou a sua actividade comercial, primeiro, com transportes de carga entre a Benfeita, aldeias vizinhas, e Coimbra, e depois, com o seu próprio estabelecimento comercial no centro da Benfeita, onde explorava uma taberna e uma mercearia com comércio geral. Aqui trabalhou e viveu durante mais de 50 anos, sendo muito respeitado pelas suas qualidades humanas e grande capacidade de trabalho.

Em 1965, a Liga de Melhoramentos, fundada 20 anos antes, viria a encontrar na boa vontade e generosidade do amigo Péssimo a cedência do terreno para, finalmente, poder construir a sua tão desejada Casa da Liga, obra que só viria, porém, a ficar concluída em 1971.

O Péssimo da Benfeita, viria a falecer em 23/05/1975, com 80 anos de idade, vítima de traumatismo craniano na sequência de um acidente de viação por despiste, no tempo em que ainda não havia cintos de segurança obrigatórios, tendo o condutor do carro em que seguia, apenas sofrido fractura de uma perna.

Vivaldo Quaresma

Benfeitense perde a vida
num acidente de viação

BENFEITA, 25 — Foi a nossa terra surpreendida na tarde de sexta-feira 23, com a triste notícia do falecimento, num acidente de viação, do nosso conterrâneo Sr. António Francisco Nunes (Péssimo), de 80 anos de idade, casado com D. Maria Assunção de Jesus.

O Sr. António Francisco Nunes havia daqui saído, com um seu amigo de Paião (Figueira da Foz), para darem um passeio na região da Serra da Estrela. Porém, perto de Vasco Esteves, freguesia de Alvoco da Serra, o automóvel em que seguiam, numa curva, saiu do leito da estrada e caíu numa pequena ribanceira. O nosso infeliz conterrâneo bateu com a cabeça na parte de cima do vidro da frente, tendo morte imediata. O condutor sofreu fractura de uma perna e foi internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

O saudoso extinto, que foi comerciante na Benfeita durante mais de 50 anos, era geralmente estimado e conhecido nesta região, onde só contava amigos. Trabalhador incansável, apesar da sua idade, sempre se manteve no seu posto de trabalho.

A COMARCA DE ARGANIL
27/05/1975

DA BENFEITA

O falecimento de António Francisco Nunes (Péssimo)

Como é já do conhecimento dos benfeitenses, e A Comarca noticiou, pereceu num grave acidente de viação, próximo de Vasco Esteves de Cima (Alvoco da Serra), o nosso estimado conterrâneo e amigo António Francisco Nunes, natural desta localidade, onde foi considerado um activo comerciante durante mais de meio século e que deixa viúva a Srª D. Maria Assunção de Jesus.

O desastre deu-se quando seguia no carro de um seu amigo, de Paião (Figueira da Foz), o qual saiu da estrada e caiu numa pequena ribanceira, tendo o nosso conterrâneo batido com a cabeça na parte cimeira do vidro, o que lhe provocou a morte.

A notícia do acontecimento correu célere por esta região fora, onde António Francisco Nunes, mais conhecido pelo «António Péssimo», era sobejamente conhecido pelas suas qualidades de homem sério e trabalhador. A sua vida foi, efectivamente, de constante e duro trabalho. Difícil seria darmos um resumo dela, pois seria muito o espaço que nesta secção ocuparíamos para tal.

O funeral do saudoso benfeitense foi uma prova nítida da estima de que gozava. Os seus restos mortais, vindos de Seia, onde haviam ficado desde a altura do acidente, chegaram em auto-fúnebre à Benfeita cerca das 19 horas de segunda-feira, onde, junto à residência do extinto, eram aguardados por centenas de pessoas de toda a freguesia e terras vizinhas. Após a chegada do féretro, organizou-se o funeral, vendo-se larga representação de Côja, um piquete da Filarmónica «Pátria Nova» e dos Bombeiros Voluntários de Côja, com os seus estandartes; do Clube Operário Jardim do Alva; pessoal da Empresa de Cerâmica da Carriça e da Havaneza Cojense; as irmandades do Santíssimo, da Benfeita, Senhora da Paz, do Sardal e S. Nicolau, dos Pardieiros. Ali vimos gente de Côja, Arganil, Alqueve, Esculca, Pisão, Pardieiros, Sardal, Enxudro, etc. etc.

Na igreja matriz houve missa e ofícios de corpo presente, celebrados pelos párocos da Benfeita e de Côja.

À família enlutada, em especial à sua desolada viúva e filhos, reiteramos as nossas mais sentidas condolências.

A COMARCA DE ARGANIL
31/05/1975

Pela Freguesia de Côja

António Francisco Nunes

António Francisco Nunes, uma figura simpática que desaparece. Natural da vizinha freguesia da Benfeita, podíamos considerá-lo de Côja, também. Vinha, por necessidade dos seus negócios, a esta vila, muitas vezes. Por aqui passava sempre, quando, nos tempos da sua juventude, fazia, no seu típico carro de mulas, a viagem entre Coimbra-Benfeita e vice-versa.

Era, podíamos dizê-lo, uma figura simpática. À primeira vista parecia irascivo. Mas, conversando, era uma alma aberta. Na sua casa havia sempre lugar para um amigo. E foi, vejam bem, na companhia de um amigo, que há muito não via, que ele encontrou a morte.

A Benfeita ficou mais pobre. E ficou mais pobre porque perdeu um dos seus filhos que era um exemplo de trabalhador activo.

Podia, nos estabelecimentos da vila, não haver um artigo que se desejava. Mas, na loja do «Péssimo» — como era chamado — encontrava-se sempre.

Nesta hora de luto para os seus familiares — e porque não para toda a freguesia? — rendamos as nossas homenagens ao homem que tão bem soube contribuir, pelo seu trabalho honrado e pela sua persistência activa, para o bem da terra que um dia o viu nascer.

A COMARCA DE ARGANIL
14/06/1975