VASCO  DE  CAMPOS

Dr. Vasco de CamposQuem foi Vasco de Campos?

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O Dr. Vasco de Campos, médico distinto e poeta, amante da natureza, do Rio Alva, dos pobres e dos seus doentes, nasceu em Ponte Nova, actual Ponte das Três Entradas, freguesia de Santa Ovaia, Oliveira do Hospital, em 2 de Julho de 1904, aldeia onde viria a falecer com 87 anos de idade, em 17 de Julho de 1991, vítima de doença prolongada que lhe causou um grande sofrimento nos últimos 14 meses de sua vida, na casa a que ternamente chamava de "Búzio", o seu Búzio.

O seu corpo foi sepultado no Cemitério de Avô, no talhão 3, campa 40, na qual foi colocada uma lápide com o epitáfio: «Aqui jaz um Amigo de Avô e da sua Gente». Sua esposa viria a ocupar a sepultura nº 41, em 19/09/1992, com 81 anos de idade.

Era filho de Benjamim de Campos Freire, proprietário, natural de Nogueira do Cravo, Oliveira do Hospital e de Albertina das Neves Correia e Campos, doméstica, natural de Pardieiros, Benfeita, Arganil, casados na Igreja Paroquial da Benfeita, em 09/02/1901, e neto paterno de José de Campos Freire e de Maria Henriqueta de Figueiredo Abranches, e materno de Francisco Marques Gouveia e de Maria da Glória.

Vasco de Campos passou algum tempo da sua vida nos Pardieiros, depois de ter ficado órfão de pai aos 7 anos de idade e de mãe aos 12, com duas tias, na casa do seu tio José Lencastre Marques Correia que vivia na Carvalha, Penalva do Alva, e que mais tarde viria a ser seu sogro, tendo frequentado a antiga Escola Primária Masculina do Areal, na Benfeita, entre 1916 e 1919, com o professor Gil Figueira.

Frequentou todo o ensino liceal no Liceu José Falcão, em Coimbra, a partir de 1919. Em 1924, depois de terminado o Curso Geral, decidiu optar pela variante de Letras pois desejava seguir Advocacia, mas viu o seu nome inscrito em Ciências por lapso administrativo. Não reclamou e aceitou aquele erro humano como premonição do destino, tendo terminado com êxito todas as disciplinas de Ciências do Curso Complementar dos Liceus, orientado para o Curso Superior de Medicina, em 1926, ano em que ingressou na Universidade.

A 12/11/1932, com 28 anos de idade, licenciou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, com 18 valores, tendo recusado a cátedra de Medicina e regressado à sua terra natal, sendo depois nomeado médico municipal de Avô, cargo que exerceu desde 08/12/1932 até à idade de 70 anos, que ocorreu em 1974.

Casou-se em 29/09/1933 na Capela de Nossa Senhora das Graças, em Carvalha, Oliveira do Hospital, com Maria de Lurdes Lencastre de Campos, sua prima direita, natural de Penalva do Alva, de quem teve 8 filhos: José Benjamim Lencastre de Campos, falecido com 4 anos de idade; António de Campos Lencastre; Francisco d'Assis Lencastre de Campos; Vasco Manuel Campos Lencastre; Maria Henriqueta Campos Lencastre Leitão; José Benjamim Lencastre de Campos, falecido com 44 anos de idade; Maria da Glória Lencastre de Campos Carvalho e Manuel Lencastre de Campos.

Criou o Rancho Folclórico Camponesas do Alva, em 29/06/1936, coadjuvado por Ernesto Caetano Abranches; fundou a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô, em 01/05/1957, e foi dirigente da Sociedade de Recreio Filarmónica Avoense, durante décadas. Foi deputado na Assembleia Nacional, de 1949 a 1953, pelo Círculo de Coimbra, nas comissões de Trabalho, Previdência e Assistência Social; foi vogal efectivo da Junta Distrital de Coimbra e fez parte dos corpos gerentes da Secção Regional de Coimbra da Ordem dos Médicos.

Foi autor de vários trabalhos literários de muito mérito, como: "SERRA! - Caminhos de um médico", 1990; no qual relata alguns episódios verídicos da sua vida de médico rural — uma vida inteiramente dedicada aos outros, principalmente aos mais desprotegidos da sorte, e os poemas: "O Canto da Cotovia", 1941; "Palavras do Coração", 1962; "O Casal de Nossa Senhora das Graças", 1962 e "Búzio - Poemas Dispersos", 1989.

Em sua memória o seu nome foi dado ao Centro Cultural de Avô, inaugurado em 19/06/1993, assim como a várias artérias do Concelho de Arganil, fazendo parte da toponímia de várias localidades, como: uma Praça, em Oliveira do Hospital (3400-068), onde existe um memorial em chapa de ferro contendo um baixo-relevo do seu busto, em bronze, e uma despedida gravada em latão, onde se lê: «Eu, sem méritos que me acreditem, e sem obra que valha, só pude dar à Serra ou antes, às suas gentes, o modesto e ignorado labor dum médico de aldeia. Búzio, 10/10/1986»; uma Avenida, em Avô (3400-362); uma Rua, em Santa Ovaia (3400-625); uma Rua, em Pomares (3305-259) e uma Travessa, em Ponte das Três Entradas (3400-591), onde se localiza a casa onde nasceu e faleceu que, infelizmente, não foi poupada nos incêndios de 2017.

Painel de azulejosEm 26/08/1995, foi homenageado pela Editorial Moura Pinto, nos Pardieiros, com a colaboração das Juntas de Freguesia da Benfeita e de Avô, da Comissão de Melhoramentos dos Pardieiros e da Fundação Fausto Dias, sob o lema "Itinerário poético de Vasco de Campos, na freguesia da Benfeita".
Pintura sobre ardósiaNela foi evocada a sua memória e inaugurados 2 painéis com versos de Vasco de Campos dedicados à Benfeita - um, na Fonte das Moscas, e outro nos Pardieiros - e realizada uma sessão solene com uma conferência pelo Dr. Luís Vale abordando o tema "Vasco de Campos - o homem, o poeta, o escritor e o médico", e uma exposição sobre "A família de Vasco de Campos e os Pardieiros", seguida de um almoço de confraternização no Santuário de Nossa Senhora das Necessidades.

Em 06/07/1996, a Editorial Moura Pinto, juntamente com a Junta de Freguesia de Avô e a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô, promoveram uma homenagem ao Dr. Vasco de Campos com uma romagem de saudade à campa onde está sepultado no Cemitério de Avô, com a colocação de uma lápide, e uma sessão solene no Centro Cultural Dr. Vasco de Campos presidida pelo Presidente da Assembleia da República Dr. António de Almeida Santos para o lançamento da 2ª edição do Livro "Serra! Caminhos de um médico", apresentado pelo Dr. Luís Vale e leitura de poemas pelo actor José Sinde Filipe, seguido de um beberete e da participação especial do Rancho Folclórico Camponesas do Alva e as Filarmónicas de Avô e de Ervedal da Beira.

Em 26/03/1999, a Editorial Moura Pinto, em colaboração com a Câmara Municipal de Arganil e a Biblioteca de Côja, lançou a 3ª edição do mesmo livro, no salão do quartel dos Bombeiros de Côja, numa cerimónia muito concorrida, seguida de jantar, onde se destacaram as presenças do Dr. Fernando Vale, grande amigo pessoal do Dr. Vasco de Campos; o Dr. Rui Pedro Gama, em representação da Editorial Moura Pinto; Mário Vale, em representação da Câmara Municipal; Eugénio Fróis, presidente da Assembleia de Freguesia de Côja; Engº Manuel Dinis Pinheiro, dos Bombeiros Voluntários de Côja; e os Drs. Armando Dinis Cosme e Vasco Lencastre de Campos, em representação da família do autor.

Em 03/07/2004, foi comemorada a passagem do primeiro centenário do nascimento do Dr. Vasco de Campos, na Vila de Avô, com o lançamento das suas "Obras Completas", um volume de 423 páginas, uma iniciativa da Editorial Moura Pinto, com uma bem elaborada cerimónia que teve início com uma celebração eucarística, congratulatória e de sufrágio, presidida por D. Eurico Dias Nogueira, Arcebispo Emérito de Braga, na Igreja Matriz de Avô.
Esta homenagem incluiu: o descerramento de uma lápide na casa onde viveu Vasco de Campos, localizada no mesmo edifício onde tinha instalado o seu consultório, numa iniciativa da Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô; a inauguração de um grande painel em azulejo na fachada principal do Centro Cultural, que ostenta o seu nome, bem ilustrativo da arte poética do homenageado; a participação da Filarmónica Avoense; exibições do Rancho Folclórico "As Camponesas do Alva" e, ainda, do grupo infantil "Netinhos" do ATL do Lar de Nossa Senhora da Assunção, de Avô, que interpretou composições escritas por Vasco de Campos, sob a direcção do Professor Daniel Gonçalves.
Estiveram presentes, muito povo e altas individualidades em representação de instituições locais e de terras vizinhas, onde a memória do saudoso Dr. Vasco de Campos, foi recordada de forma intimista e onde se destacaram: o Dr. António de Almeida Santos, deputado, amigo e admirador do homenageado; Mário Vale, em representação da Câmara Municipal de Arganil; o Professor Mário Alves, presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital; o Dr. António Simões Saraiva, presidente da Assembleia Municipal; o Dr. Carlos Castanheira, presidente da Editorial Moura Pinto; Sérgio Francisco, em representação do povo de Pardieiros e muitos familiares do homenageado.

O abnegado Dr. Vasco de Campos foi denominado "o mártir da Serra" porque, sacrificadamente, prestava uma dedicada assistência às populações da serra, sempre que era necessário, e com elevadíssimo profissionalismo, sem exigir quaisquer vantagens económicas.

Amado pelo povo que servia, o Dr. Vasco de Campos, era credor de uma profunda admiração e respeito, quase veneração, em todos quantos com ele conviveram nos longos anos da sua actividade profissional, que exerceu em verdadeiro sacerdócio.

Nutria um grande amor ao campo, às aldeias serranas e às gentes simples dos montes que percorria e, fruto da sua sensibilidade poética, escreveu muitos poemas ao longo da sua vida.

VIVALDO QUARESMA
Junho, 2020

 

 


Em memória
do Dr. Vasco de Campos

Pelo DR. ANTÓNIO DE ALMEIDA SANTOS

 

Ao receber a notícia do falecimento do Dr. Vasco de Campos senti o impulso de lhe render esta singela homenagem.

Neste mundo maniqueísta em que vivemos, com os homens separados por muros de ideologia, religião, raça, fortuna e outros que demoram em cair, pergunto a mim mesmo que força me levou sempre a subavaliar nesta estima e admiração de sempre, o que do Dr. Vasco de Campos me separava. E encontro esta resposta: perante o fascínio da bondade e da inteira doação aos outros, que valem o choque das ideias ou a diferença das convicções?

Sempre a bondade teve em mim um devoto. É mesmo essa a minha única religião. E o Dr. Vasco de Campos preencheu sempre, até à aproximação possível, o meu ideal de santidade.

Não privámos muito. Mas era ele quem - desinteressadamente - velava pela saúde dos meus. E dele me lembro, sempre solícito e afável, a responder à chamada. Na hora do achaque chamava-se o Dr. Vasco.

Outros o chamavam. E não raro se via chegar de macho - quando a estrada ainda não tinha atingido a aldeia - ou de carro - depois que atingiu - quantas vezes para, no macho do Severino Espanhol, ir até aos confins daqueles andurriais medonhos atender um aflito e quantas vezes salvá-lo.
Acontecia isso sempre que o aperto era grande ou o "Farmácias" - prático erigido pela força das coisas em prestador de primeiros cuidados de saúde - se não entendia com o caso.

Lembro-me - onde isso vai! - dele ter trazido para a casa do Padre Cândido - outra saudade!... - o primeiro aparelho de rádio que deslumbrado ouvi. Ligou-o por um extenso fio à bateria do seu carro e foi um deslumbramento!

Depois, mais nos carteámos do que nos vimos. De cada vez que publicava um livro de versos, mo oferecia, e eu rendia, por carta, uma sincera homenagem à sua inspiração lírica. Respondia-me, modesto, que o livro não era merecedor do elogio.

Também eu lhe ia oferecendo o que publicava. Em regra livros de combate político. Pois nunca a sua resposta foi a de um adversário, antes a de um espírito que compreende a discordância e de algum modo a aprecia.

Morre, com o Dr. Vasco de Campos, a mais perfeita incarnação do médico de família. Isso que ele - aluno distinto - preferiu a uma flamejante carreira académica.
Apaixonado pelas belezas do seu Rio Alva? Talvez também. Mas apaixonado sobretudo pela tentação de se dar. Ele foi o verdadeiro apóstolo do bem que se faz e não do bem que se prega. E do bem que se faz sem alarde e do sacrifício que se aceita, sem queixume, antes com alegria. Nessa medida, imagino-o, por entre as dores com que a sorte tão duramente o puniu, um homem em paz consigo.
No fim da vida, quando do seu farol da Ponte das Três Entradas via nascer mais um dia, que podia ser o último, imagino-o em paz por dentro, preparado para dar contas de si ao Deus em que sempre acreditou. Talvez ansioso por ver face a face essoutro homem bom a que tanto se assemelhou, o Cristo de todas as bondades.

O seu último livro, contendo «retalhos» da sua vida de médico, merece emparceirar com as histórias de santos. É um livro muito belo - até literariamente belo - que deve ser aproximado dos «Retalhos da Vida de um Médico», de Fernando Namora, para um cortejo em que sobressai a força do apostulado de Vasco de Campos.

São homens destes que justificam a esperança no futuro do Homem. Semeemos a sua memória nos nossos corações e confiemos numa boa colheita de bondade.

 

ANTÓNIO DE ALMEIDA SANTOS
in: A Comarca de Arganil, 31/08/1991

 


 

Vasco de Campos
e a Beira-Serra

Pelo DR. A. J. RODRIGUES GONÇALVES

"Um verdadeiro amigo é quem te pega na mão e te toca o coração"
Gabriel Garcia Marquez.

Recordar Vasco de Campos é recordar um amigo. Um verdadeiro amigo. Um amigo que tocou o coração de todo um povo. Que se deu ele próprio a este povo.
A Avô, sim. Mas também à Beira Serra. Do Açor à Vide, do Alva à Deguimbra.
De um dos seus livros colhe-se a razão desta dádiva. Colhe-se também que foi uma dádiva desinteressada. Como se de uma obrigação se tratasse.
Uma obrigação de se dar "em prol da humanidade", como ele disse.
Vasco de Campos deu-se ele próprio, em soberana ligação de desprendimento, quando lhe estiveram abertas as portas da fama.
(Ele sabia que é bom ser-se importante, mas é mais importante ser-se bom).
E foram gerações sucessivas a beneficiar desta dádiva.
Gerações sucessivas de homens e mulheres que lhe devem, literalmente, a existência.

Não é preciso (ou talvez seja) ler o seu livro "Serra! - Caminhos de um médico" para sabermos que muitos foram ajudados a nascer pelas mãos do Dr. Vasco de Campos.
Nas mais recônditas aldeias da serra, nos tempos difíceis em que ali não chegava qualquer sinal de civilidade aí chegou Vasco de Campos.
Quando outros se negaram a servir este povo sofredor.
Vasco de Campos foi, assim, o verdadeiro amigo que pegou na mão de um povo e tocou o coração daqueles que tiveram a honra de ser por ele servidos.
E foi também amigo sobretudo daqueles que tiveram ensejo de perceber a dimensão deste Homem. Que não parecem ter sido muitos...

Por isto já Vasco de Campos merecia, de todos, o supremo apreço que se deve dar aos eleitos, por ter abdicado da sua própria carreira em favor da Humanidade.
Em favor da Humanidade... o que hoje parece estar em desuso. Só que Vasco de Campos não se ficou por aqui...

Com grande humildade, foi também poeta, prosador e homem de virtudes. Como prosador e poeta falaremos mais tarde.
Como homem de virtudes diremos que confluíram nele valores éticos que só encontramos nos eleitos.
Vasco de Campos procurou sempre elevar-se acima dos meros interesses sociais e económicos.
Socialmente, deu-se ele próprio à vida e aos outros sem esperar nada em troca.
Como se de uma obrigação se tratasse.
Não quis, nunca, receber uma simples homenagem.
Falamos do que sabemos porque guardamos correspondência que o atesta. No seu múnus, cobrou pecúlio com descrição num verdadeiro desapego à fortuna.
Quantas excepções (ou será a regra?) por aí vão...
Quantos vezes o doente saía do seu consultório com o diagnóstico, com o magro pecúlio que levava para pagar a consulta, com o medicamento oferecido e ainda com dinheiro para comprar a sopa que lhe faltava.

Agora que passam 99 anos após o seu nascimento, que este lembrete sirva para todos quantos lhe devem promover a homenagem que merece aquando do centenário do seu nascimento.
É preciso que toda a região que ele serviu saiba ser grata ao homem que, perante o sofrimento humano não ficou de braços cruzados, como hoje é mister fazer.
É preciso recuperar valores. Recuperar o exemplo de Vasco de Campos é a obrigação de todos quantos (ainda) têm a imagem do cultivador de virtudes do Homem incomum que um dia "passou" pela Beira Serra.

 

A. J. RODRIGUES GONÇALVES
in: A Comarca de Arganil, 26/06/2003

 

PORTAS DO INFERNO

Trepar às montanhas, descer ao fundo
dos vales, vale mais do que viver encerrado
entre paredes - ZAMAKHSHARI

Portas do Inferno!
Aliciante cartaz de um Portugal desconhecido. Chame-lhes assim, com propriedade, quem por lá passou numa noite tempestuosa.

Atravessei-as uma vez sob rajadas de granizo e guardo dessas horas lembrança terrível!
Com o rosto colado ao albardão da besta, ia às cegas, guiado pela perícia do arreeiro serrano e o instinto da mula.
Um vento diabólico, arremessava-nos a cada passo para fora do trilho escabroso e incerto.
A solidão tétrica, o negrume cerrado, o roncar sinistro do vento e as saraivadas inclementes, conjuravam-se para aniquilar ali a nossa ousadia.
Em lúgrube toada, parecia-me ouvir os célebres versos de Dante:
«Deixai lá fora a esperança...». Mas acicatava-nos o Dever, e passámos...

Portas do Inferno, sim!!

Também lá me quedei em límpida manhã de um sereno Abril.
Impressão oposta!
Por aquele tempo e naquele dia, a Serra era bela e acolhedora.
Vestia o manto roxo das urzes floridas, rendado com giestais doirados.
Em pequenos almargens, por entre os penhascos, desabrochavam timidamente as primeiras boninas, ainda como que assustadas da inclemência das neves.
Ao alto, quase no azul do céu, cantavam cotovias aleluias de amor.
A Natureza em galas e em festa, era um hino a Deus criador!

Esquecido dos meus trabalhos e das minhas mágoas, apeteceu-me ficar ali, onde tudo era natural, simples e puro como o ar que respirava.
A paz clara daquele altar grandioso, convidava-me a meditar, comparando a ostentação que perde com a simplicidade que redime.

Diante dos meus olhos, tinha um panorama maravilhoso, de grandeza alpestre. Aos meus pés, um abismo: a encosta abrupta e fragosa, descia em declive rápido até ao vale fundeiro, onde a ribeira bramia mordendo as fragas.
Em frente e à direita, lá estava o Piódão nostálgico, de casitas pardas cobertas de ardósias negras. À esquerda, Chãs d'Égua; mais além Gondufo; mais abaixo Cide.
Ribeira abaixo: Foz d'Égua, Casas Figueiras, Abitureira, Coucedeira, etc...
Terras minhas conhecidas; gentes das minhas relações.

Sei todos os caminhos e atalhos que lá vão dar, à força de percorrê-los, qual cavaleiro andante no cumprimento de um fado.
Por estes trilhos ásperos, sob neves e soalheiras, deixei energias, sonhos e ambições, num simples e apagado viver de médico de aldeia...
E é talvez por isso, que eu quero bem a estes montes e a estas gentes!

Portas do Inferno!

Pórtico aberto para um mundo estranho e ignorado, aonde vim encontrar um povo sofredor e heróico, que teima em arrancar do magro chorume da montanha a sua subsistêncla de miséria!
Com este povo me identifiquei nas suas amarguras, para lhe entregar, em dádiva total, os préstimos do meu saber.

Os episódios que ilustram estas páginas, todos verídicos, desde o lapuz que me imobilizou os braços no momento crítico de uma aplicação de forceps até à velhinha encardida que regateou a penúria dos meus honorários, foram por mim vividos e sofridos, neste ambiente singular, ao mesmo tempo agressivo e acolhedor.

Portas do Inferno serão o símbolo deste pequeno mundo de contrastes violentos, onde encontrei e suportei tormentos de derrotas e aleluias de triunfos, que a lembrança guarda e o coração não pode calar!

VASCO DE CAMPOS
Em jeito de prefácio, do seu livro "Serra! Caminhos dum médico".


A CONQUISTA DO «CANUDO»

Vasco de CamposNo dia 12 de Novembro, do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, de 1932, fui convocado para o último acto da minha licenciatura pela douta Faculdade de Medicina da velha Universidade de Coimbra.

Dia grande para mim!

Era a meta de uma longa caminhada, iniciada em Outubro de 1919, no Liceu de José Falcão, onde aportei órfão de pai e mãe, e severamente traumatizado por muitos e cruéis infortúnios...

Era o dealbar de uma esperança no céu negro da minha juventude.

Levantei-me cedo. Escanhoei-me, penteei-me e vesti traje académico a rigor, como impunha a praxe, ao tempo ainda reinante.
Subi a Ladeira do Castelo, a caminho do Hospital, sobraçando a pasta de quintanista de fitas amarelas desfraldadas ao sopro da brisa matinal.

Era a última vez que exibia as insígnias de finalista e expunha este meu troféu aos olhares cobiçosos das meninas casadoiras.

Ladeavam-me os companheiros de república, no antecipado gozo de me deixarem nú nos Claustros de São Jerónimo, quando o bedel Ferreira da Silva proclamasse solenemente o veredicto do Júri.
À entrada do Hospital, incorporou-se no grupo o Dim-Dim, implorando a dádiva das minhas calças, se acaso saíssem intactas da refrega galhofeira.

Na véspera, o Assistente da Cadeira, tinha bichanado a uma enfermeira, que o Professor Novais e Sousa me marcara uma nota alta no acto prático.
A inconfidência chegou ao conhecimento dos meus companheiros, e um, mais impaciente, e certo da minha aprovação, arranca-me a manga direita da batina e da camisa, exactamente na altura em que eu transpunha a porta da sala dos actos.

Embrulhei-me na capa o melhor que pude e enfrentei, algo receoso, o Venerando Tribunal de Minerva.
À minha vénia cerimoniosa, corresponderam os Senhores Lentes com um sorriso benévolo e acolhedor, porventura reservado aos discípulos laureados.
Iniciado o interrogatório, fui respondendo com calma, sempre atento ao braço direito, que mantinha escondido e imobilizado debaixo da capa.
Entretanto, a discussão foi aquecendo, e num gesto de entusiasmo mal contido, liberto o braço e exponho a sua nudez ao pasmo dos veneráveis julgadores da minha ciência.

Agora, novo sorriso, mas este amarelo, talvez severo, e eu supus que iria pagar caro a singular irreverência.
Não foi grande o preço da garotice: baixaram-me a nota, o que para mim valeu o mesmo.

Nesses tempos, os Lentes eram semi-deuses com quem se não brincava impunemente.
Lida a sentença final, cumpriu-se o ritual da Praxe: rasgaram-me as vestes e cubriram-me a nudez completa com um caudal de abraços.
Depois, foi o regresso à república - o «Panteon do Génio» - com o cortejo de amigos, o içar da capa no mastro de honra e a festança habitual de rancho melhorado e libações copiosas.
À noite, a costumada peregrinação de despedida pelas tascas da Alta e da Baixa, no seguimento da festa, até de madrugada.

***

Acordei alta manhã com uma réstia de sol a acariciar-me o rosto. Soergo-me preguiçosamente.
Lanço um olhar de despedida ao meu mobiliário de estudante: a cadeira e mesa de pinho, a estante de parede com os compêndios alinhados, o velho candeeiro de petróleo que iluminou o meu saber, e todo aquele desalinho de uma vida descuidada que iria acabar naquele momento.

Julgo-me possuído de um sonho. Será verdade?!

Sim, era verdade.
Para trás, ficava um caminho de esperanças, percorrido com relativa facilidade.
Para a frente, as incertezas de uma profissão que eu adivinhava espinhosa.

Entretanto, o jornal académlco «O Poney» noticiava a minha licenciatura com imerecida e lisonjeira local:
«Formou-se com a cadeira de Partos, onde obteve a classificação de 18 valores, o Dr. Vasco de Campos, uma das maiores esperanças do seu ano. O Sr. Doutor Novais e Sousa, soube recompensá-lo no trabalho, constatando a sua invulgar inteligência. O Dr. Vasco de Campos, se fosse convidado para a Faculdade, era prova de que ela ainda sabia fazer justiça. Como até ao lavar dos cestos é vindima, aguardamos e sinceramente damos um grande xi-coração ao jovem poeta, etc.»

Mais uns dias de hesitação em que o pensamento vagueia sem norte à procura do futuro.
Releio com atenção o juramento de Hipócrates e fica-me a bailar no íntimo esta sentença imperativa:
«Tomo o compromisso solene de consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.»

Pronto. Estava decidido! Ao serviço da Humanidade... Não esperei pelo «lavar dos cestos».
Voltei as costas ao accessit e disse adeus à glória, com a alma envolta num misto de saudade e de libertação. E parti, rumo à vida.

Destino?

A minha Serra natal, com os seus mistérios e carências, aonde me chamava a voz longínqua das raízes.
Iria levar aos meus irmãos serranos, condenados a um abandono cruel, os préstimos da minha profissão.
Iria ser testemunha e cireneu das suas angústias e amarguras...
Ao serviço da Humanidade!

VASCO DE CAMPOS
Introdução do seu livro "Serra! Caminhos dum médico".


A POSSE

Vasco de CamposNo meu tempo, concluída a licenciatura e esgotada a teta de Minerva, os recém-formados médicos eram lançados na vida prática sem quaisquer ajudas do Estado e sem tutela profissional.

Saciados de teorias e carecidos de experiência, tinham que pedir às capacidades próprias, os necessários meios de sobrevivência.
Muitos procuravam um lugar de médico de Partido(*) que lhes garantisse um mínimo de condições de vida; alguns "vendiam" o prestígio do DR por um casamento rico que os livrasse de ulteriores canseiras.

A mim, por sentença do Destino, coube-me o Partido Médico de Avô, o mais pobre do concelho e o mais difícil de servir.

No dia oito de Dezembro do ano de 1932, jurei solenemente perante o Presidente do Município de Oliveira do Hospital, cumprir com zelo as exigências do cargo, exaradas com força de lei no Código Administrativo.
E estas, eram muitas e assaz penosas.
Empossado e inscrito no orçamento municipal, com o "chorudo" vencimento de quinhentos escudos mensais, encaminhei-me para o meu posto.

Em Galizes, larguei a carreira e aluguei o Ford T, do Manjerico, o único automóvel que ali fazia fretes.
Naquela tarde de Dezembro, fria e triste, enquanto o automóvel corria rumo a Avô, na minha alma dorida renasciam saudades: da capa de estudante, das fitas amarelas de finalista, das ilusões doiradas que elas agitaram e o vento levou...

No Miradouro das Varandas mandei parar e debrucei-me sobre a paisagem.
Em baixo, o burgo medievo de casas pardas, coroado por um castelo desmantelado, adormecia no lusco-fusco.
Das lareiras pobres irrompiam espirais de fumo que o vento esfarrapava e diluía na atmosfera cinzenta.
Ao longe, no horizonte, a silhueta plúmbea dos montes balizava um mundo para mim desconhecido, onde iria sepultar a minha mocidade, plena de ideais generosos.

Mais uns quilómetros andados e a carripana estacou à porta de D. Isabel Godinho Mascarenhas, Senhora que dava guarida aos médicos sem família.
Entrei no velho solar com a unção de um noviço.
A minha simpática hospedeira encaminhou-me para uma sala ampla, de tecto em gamela, mandou-me sentar numa cadeira de espaldar, junto de uma mesa carcomida e disse-me: "Aqui escreveu Brás Garcia Mascarenhas o seu poema Viriato Trágico".
Abriu a porta dum quarto contíguo, colocou lá a minha mala, e acrescentou: "Aqui nasceu e morreu o poeta".

Cercado de História e bafejado de Poesia, comecei a sentir-me Alguém neste ambiente amigo.

Não tardou a Junta de Freguesia, a dos três Manuéis: Manuel Dinis Dias, Manuel de Almeida Gonçalves e Manuel Fonseca.

O primeiro, seu Presidente, num discurso caloroso, saudou-me com afecto e pediu a minha permanência no cargo, dado que os meus dois últimos antecessores tinham emigrado para África, desiludidos com a penúria dos honorários que o Partido lhes facultava.
Vieram depois as pessoas gradas da vila, com o habitual aperto de mão e votos de boa sorte. Lá fora, a Filarmónica local rompeu com um passo-dobrado, despertou a pacatez do burgo e convocou o povo.

Naquela hora, choveram sobre mim as rosas da felicidade - os acúleos viriam mais tarde...

Após a ceia, cozinhada ao jeito e paladar do meu antecessor - vegetariano de hábitos excêntricos - fui operar um panarício ao fidalgo da terra - Sr. João Soares de Albergaria - ao tempo já em franca decadência económica, mas ainda detentor do prestígio dos nobres de Avô.
A este Homem bom, duma generosidade sem peias, capaz de entregar a camisa do seu corpo ao pedinte que dela precisasse, fiquei devendo o favor duma amizade sincera que jamais esquecerei.

Ele e o seu irmão Augusto Soares de Albergaria, foram os cireneus da minha cruz, no alvorecer da minha profissão.
Grandes e prestáveis Amigos, cuja memória permanece viva no meu pensamento e na minha saudade!

O Augusto era um tipo original. Apesar da sua instrução não ir além duma breve passagem pela escola do Piódão, do saudoso Padre Nogueira, era um autodidacta, ávido de saber.
Passava a maior parte do seu tempo livre no meu consultório, folheando e lendo livros e revistas, e assimilando o que podia.
Padecia de hemorróidas, doença de que o tratei em várias crises, e neste capítulo da Patologia, chegou a ser um "sábio".
Um dia, num jantar de amigos, dissertou com tal proficiência sobre doenças do recto e suas terapêuticas, que um dos convivas, médico de verdade, se dirigiu a ele nestes termos: "Senhor doutor... queira desculpar… não sabia que estava na presença de um colega… por sinal muito competente e actualizado..."
Uma gargalhada geral encerrou o equívoco.

VASCO DE CAMPOS
Intróito do seu livro "Serra! Caminhos dum médico".


(*) Médico do Partido (não associar a Partido Político) - Durante séculos, nos tempos em que não havia Serviço Nacional de Saúde, nem Centros de Saúde, nem Médicos de Família, os cuidados de saúde pública eram assegurados pelos médicos municipais, também denominados facultativos do partido; isto, porque também existia medicina privada e tais médicos eram designados por facultativos particulares. Os médicos do partido, ou médicos municipais, eram contratados pelo Poder Municipal, mediante Concurso Público (sem qualquer condicionante política) e as suas competências abrangiam, entre outras:
- tratar gratuitamente os pobres, expostos da Misericórdia, crianças desvalidas e abandonadas, presos;
- proceder à vacinação e revacinação sem distinção de classes;
- inspecionar as meretrizes nos dispensários, etc.
Ou seja: Médicos do Partido, eram profissionais liberais ou prestadores de serviços em regime contratual que, para além de tratarem gratuitamente dos mais necessitados, também tinham como tarefa ocupar-se da Saúde Pública, estando dependentes em termos administrativos e financeiros do Administrador do Concelho. [VQ]

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