O  FIM  DA  GUERRA

Fonte: Diário de Notícias / Regional
Data: 07/05/2001

ARGANIL(1)

1620 badaladas pelo fim da II Guerra

Sino da Paz, “único sinal na Europa” que evoca o armistício de 1945, volta hoje a tocar durante duas horas, em Benfeita

João Fonseca

Logo à tarde, “quando forem duas horas”, António Mina estará na Torre de Santa Rita para, pelo 56º ano consecutivo, assegurar que o Sino da Paz, em Benfeita (sede de freguesia do concelho de Arganil), cumpra o seu dever: tocar durante “quase duas horas”, isto é, durante o tempo que demora a bater 1620 badaladas – uma por cada um dos dias que durou a II Guerra Mundial(2) – e, assim, assinalar o fim do conflito iniciado em Setembro de 1939.

A Torre de Santa Rita, outrora designada de Salazar e também conhecida por Torre da Paz, com o seu sino, relógio e mecanismo que permite, uma vez por ano, dar os tais 1620 toques da comemoração é o “único sinal em toda a Europa a recordar a efeméride”, garante quem ali vive, citando, inclusivamente, investigadores da história do monumento, mandado construir por Mário Mathias, “ilustre benfeitense” e “funcionário superior do Ministério do Interior”, quando, alguns meses antes, começou a “adivinhar” a paz, conta António Martinho, presidente da junta de freguesia.

António Mina dá corda e vigia a “saúde” do mecanismo que, anualmente, celebra a efeméride. Aos 73 anos, guarda, zelosamente, as memórias do monumento.

Nos seus 56 anos de vida, este mecanismo nunca recebeu a visita de um técnico, nem sequer uma “peça nova”

Em 7 de Maio de 1945, dia em que terminou o conflito, a obra ainda não estava concluída, mas “já ia a tempo de festejar o fim da guerra”, embora ainda manualmente – o dispositivo automático e relógio a ele acoplado, estavam, então, ainda a ser construídos em Almada, pela Reguladora(3) de Manuel Francisco Cousinha.

Fotografia de V.Quaresma - Junho 2001

“Vinha com um molho de lenha por aí fora”, recorda António Mina, apontando para a outra margem da ribeira do Carcavão, quando ouviu o sino tocar. “Comecei a correr e só parei na torre”. Depois de convencer o então presidente da junta de freguesia, Alfredo Oliveira, a deixá-lo tomar conta do badalo, o sineiro continuou a anunciar a “boa nova” e só parou quando “os braços já não aguentavam mais”. Foi “rendido por outro rapaz” e, recorda ao DN, nessa altura já “tinham rebentado muitos foguetes” e preparava-se “uma jantarada de truz na taberna do António Dias”. Nessa noite ninguém se deitou.

A II Guerra Mundial acabou. Benfeita ouviu, feliz, o Sino da Paz e compreendeu, desde logo, o significado da Torre de Santa Rita, erguida a meio da escadaria que leva a aldeia até ao Santuário da Senhora das Necessidades.
E ganhou um sineiro, António Alberto Martins de seu nome (deve o apelido Mina à sua mãe, Guilhermina), hoje com 73 anos de idade, barbeiro de profissão, primeiro, carteiro, depois.

Barbeiro e carteiro na sua terra ou fora dela, mas sempre zeloso sineiro, relojoeiro e guarda da torre e suas memórias.

Nunca foi preciso chamar um técnico, “nunca este mecanismo levou uma única peça nova”, garante, enquanto dá corda ao aparelho, rodando uma manivela que, ritmada e lentamente, eleva os dois blocos de granito, que funcionam como “pesos” do relógio.

Para além da cuidada manutenção garantida por António Mina, o mecanismo “só precisa de corda duas vezes por semana”, para “dar horas e as meias horas certas”.

E mesmo que o sineiro não suba, hoje à tarde, a escada em caracol, com degraus de madeira, que dá acesso ao equipamento, este, “está pronto a disparar, às duas horas, as 1620 badaladas”, assegura, explicando o papel de uma “roda dentada 365 vezes”. Nos anos bissextos é necessário, no entanto, intervir para que a efeméride seja lembrada no dia certo: basta, diz revelando o segredo, “fazer com que a roda recue um dente”.

Telefonema do Porto marca hora da festa

“Soubemos do fim da Guerra antes de Lisboa”, diz António Mina, recordando o telefonema que, às duas da tarde de 7 de Maio de 1945, um funcionário de uma empresa inglesa do Porto fez para a sua mulher, natural e residente na Benfeita. Em Portugal “ainda quase ninguém tinha conhecimento da boa nova” e já o sino da Torre de Santa Rita anunciava a paz, conta o sineiro, sem disfarçar algum orgulho por pertencer ao grupo restrito de portugueses que soube do armistício antes da maioria e, sobretudo, por festejar e anunciar o sucedido tocando o sino. É por isso, explica António Martinho, presidente da junta de freguesia, que, desde então e sempre que se completa mais um ano sobre o fim do conflito, o Sino da Paz começa a disparar as 1620 badaladas àquela hora.

Recuperação da aldeia “restaura” torre

Subscrição pública foi insuficiente para aumentar altura ao monumento, que ficou, até, sem cúpula

João Fonseca

O “monumento que serve de padrão” para assinalar, na Benfeita, o “termo da catástrofe que ensanguentou quase toda a Europa”, foi idealizado nos finais de 1944, por Mário Mathias. Projectava, porém, uma torre mais alta e mais rica que aquela que acabou por ser feita, em alvenaria de xisto e granito, em pleno centro da aldeia que desce, por uma encosta da serra do Açor, até às ribeiras do Carcavão e da Mata.

O receio de que a estrutura não suportasse mais que os três pisos que possui e a falta de verbas (a obra foi essencialmente custeada pela subscrição pública aberta para o efeito) determinaram que a Torre da Paz não subisse mais alto e ficasse sem cúpula, recorda ao DN, António Martinho, autarca da Benfeita. Mas, nem por isso deixa de cumprir a sua função ou de justificar o orgulho que os benfeitenses, sobretudo os que viveram os tempos da II Guerra, têm nela. O monumento vai, aliás, ser alvo de restauro, no âmbito de um programa de recuperação da aldeia vizinha da Reserva Natural da Mata da Margaraça, por iniciativa da Câmara de Arganil e Comissão de Coordenação da Região Centro, com apoios comunitários.

O projecto, coordenado pelo Gabinete Técnico de Arganil, prevê intervenções em edifícios da arquitectura religiosa e civil, pública e privada. Designadamente na capela que, ao lado da torre, parece explicar a mudança do nome da terra – Benfeita chamava-se Vale Verde(4). Assim que ficou concluído, o edifício octogonal mereceu os maiores aplausos, sendo unânime a ideia de que, de facto, se tratava de uma obra “bem feita”.

NOTAS

Existem algumas incorrecções e imprecisões nestas notícias, que requerem um breve, mas necessário, comentário:

(1) - O título ARGANIL está, obviamente, incorrecto, pois não tem qualquer relação com o subtítulo, nem com o local onde decorre a notícia. A respeitar a intenção do autor, o título deveria ser BENFEITA.

(2) - Se a cada badalada correspondesse um dia de guerra, então a segunda guerra mundial teria durado, apenas, 1620 dias. Ora como é sabido, os marcos que definem o início e o fim desta guerra, na Europa, reportam-se à data da declaração de guerra à Alemanha, pela Inglaterra e pela França, após Hitler ter invadido a Polónia (03/09/1939) e à data da rendição formal das forças Alemãs, na Noruega (07/05/1945), respectivamente. Assim, teremos um período de 2073 dias de guerra, na Europa.

(3) - A empresa que construiu o relógio da torre chamava-se "A Boa Construtora", de Manuel Francisco Cousinha & Filhos.

(4) - Não existe qualquer evidência de que a Benfeita, alguma vez se tenha chamado "Vale Verde", para além desta antiga referência fantasista.
De facto existem documentos que comprovam a existência da "villae rusticae de Bienfecta" datados de 1196, da era cristã.
A construção da capela de Santa Rita, por mais antiga que tenha sido, é muito posterior aos finais do século XII.
Nos livros paroquiais dos séculos XVIII, XIX e primeiros lustros do século XX, a povoação aparece sempre grafada com o nome Bemfeita, com (m). Após a reforma ortográfica de 1911, surge a confusão entre Bemfeita e Benfeita, com (n), aparecendo as duas formas designadas indistintamente.
Após o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, de 10 de Agosto 1945, ficou definido que a grafia exacta e oficial seria Benfeita, com (n).

Vivaldo Quaresma