O  OUTONO  DE  1918

HORAS SOMBRIAS

por Dr. Mário Mathias
"A COMARCA DE ARGANIL" - 01/01/1951

Quando, nas primeiras semanas do Outono de 1918 o enfraquecimento moral dos exércitos austro-alemães, fazia esperar para breve o fim do flagelo da guerra, que desde Julho de 1914 ensanguentava e enchia de ruínas e de fome a Europa, um novo flagelo, uma doença terrível, nova e misteriosa, apareceu nas regiões fronteiriças e, recrudescendo rapidamente, espalhou-se por toda a terra portuguesa.

De espanhola baptizada a princípio, foi depois mais cientificamente crismada de gripe-bronco-pneumónica.

Abandonando a Benfeita para fazer em Lisboa um exame de química, e interrompido este após a prova escrita, pelo encerramento dos estabelecimentos de ensino como medida tendente a evitar a propagação da moléstia, regressei à Benfeita para acompanhar minha avó, nas horas de angustiosa inquietação que todos naquele momento estávamos vivendo.

O tempo tornara-se áspero. Depois de um verão e de um começo de Outono bastante secos para terem determinado preces ad petendam pluviam, a chuva caía persistentemente e o frio intenso, tornado mais agressivo pelas espessas camadas de geada que provocava, e pela ventania, infiltrava-se nas casas e enregelava os corpos mais enroupados.

Nessa viagem, porque os combóios eram poucos e os horários incertos, tive de passar umas horas da noite em Coimbra, talvez a única cidade com as ruas iluminadas a gás, iluminação deficiente embora e mal cheirosa pela má qualidade do carvão do Cabo Mondego, mas de que nem Lisboa então beneficiava.

Para matar o tempo que faltava para continuar viagem, refugiei-me no recanto mais obscurecido dum pequeno café da Baixa. Os fregueses eram poucos e, salvo numa mesa, em que estavam quatro ou cinco pessoas, conversando animadamente, mas em voz ciciada, quase todos tomavam rapidamente o seu café ao balcão, saindo de seguida.

Apenas os ocupantes daquela mesa, e eu, permanecíamos.

Devo ter dormitado, dormitei mesmo, por certo diversas vezes, porque só vagamente me parecia ter entrevisto indivíduos que entravam e se dirigiam directamente à mesa ocupada e, após uma troca de palavras com alguém dó grupo, saíam sem tomar qualquer bebida. E só confusamente também julgava, talvez por ter-lhes ouvido frases truncadas e palavras soltas, que aqueles senhores estavam falando de política, revoluções, sargentos, civis, infantaria 23, prisões, etc.

À hora de fechar o café, o grupo já não estava e eu saí para a rua mergulhada na treva, porque o gás se extinguia completamente à meia noite e fui completar a espera para a desabrigada estação nova. Alguns dias depois, porém, lembrei-me dos meus companheiros do café ao ler nos jornais a notícia de que a Administração Militar, Infantaria 35 e Artilharia 2, se haviam revoltado sob o comando do coronel Alexandre Mourão (1) e que de Santa Clara haviam bombardeado o quartel de Infantaria 23 (2). Então liguei às frases incompletas que lhes ouvira, o seu verdadeiro significado e alcance e compreendi porque tanta gente, entrara e saíra daquele pequeno café da Baixa, sem ter consumido qualquer bebida...

À minha chegada à Benfeita, a epidemia flagelava já toda a freguesia e encarniçava-se contra os Pardieiros, onde a morte do Alfredo, simpático e alegre moço de 26 anos, um dos primeiros atacados, filho único do Cristiano da Costa, lançara toda a gente na maior consternação.

Atravessando a ponte do Cabo, encontrei-me logo com três cadáveres, metidos em toscos caixões mal fechados e sem quaisquer ornamentos ou pintura, que esperavam poisados na estrada, em frente da minha casa, que alguém levantasse as ramadas duma parreira que o vendaval quebrara e lançara sobre o caminho, e os cabos os viessem depois buscar para o cemitério.

Nas missas, quando o rito o permitisse, dava-se a oração pro oitanta mortalitate vel tempore prestitentiae e em todas as igrejas e capelas da diocese se faziam preces públicas com o Santíssimo exposto à boca do sacrário (3).

As autoridades civis e eclesiásticas recomendavam a adopção das práticas profiláticas pessoais e colectivas que as circunstâncias aconselhavam (4), mas a gripe foi recrudescendo, bem se podendo dizer que não houve lar onde não entrasse, apavorando o povo que não tinha batatas, nem arroz, nem milho para se alimentar, nem remédios para combater a doença, nem dinheiro para os comprar.

O mal começava por uma dor de cabeça, especialmente na nuca, febre, náuseas, por vezes tosse, dores de garganta, rouquidão. E morriam assim aos milhares, homens e mulheres, velhos e crianças e gente na força da vida!

O Dr. Alberto do Vale, facultativo de Coja, apesar de doente e extenuado pelo excesso de trabalho, não desamparava os enfermos do seu partido, passando dias inteiros na Benfeita, onde estiveram simultaneamente mais de cinquenta pessoas de cama, nos Pardieiros, onde houve mais de cem, e nas outras povoações da freguesia, pois em todas elas a moléstia fazia vítimas. De igual modo procediam os Drs. José Antunes Leitão e Custódio Henriques nas áreas dos partidos de Arganil e de S.Martinho da Cortiça.

Falecidos, entretanto, os dois enfermeiros do hospital de Arganil e doentes dois dos três facultativos do concelho, a situação tornou-se alarmante.

O professor Lopes da Costa, presidente da Junta da Freguesia de Arganil, corroborando e fortalecendo os pedidos do subdelegado de Saúde, telegrafou então directamente ao Presidente da República expondo a situação do concelho e pedindo auxílio, e Sidónio Pais não fez esperar a resposta nem o envio de dois médicos mobilizados, seis enfermeiros e diversos cabos e soldados das companhias de saúde (5).

Nas ruas, acendiam-se de dia e noite grandes fogueiras com rama de pinheiros e de eucaliptos e grandes braçadas de estevas, rosmaninho e outras plantas resinosas; alguns, acreditando principalmente no poder preventivo e miraculoso do sumo da uva, enfrascavam-se, entretanto, em vinho ou aguardente, embora os jornais proclamassem tal prática inútil ou até contraproducente...

Mas a doença continuava enigmática e cruel, sem remédio eficiente nem tratamento adequado, que dessem quaisquer garantias de seguro êxito.

Por toda a parte, nos concelhos e nas freguesias, se constituíam comissões para angariar donativos e socorros para os epidemiados: o governo, as instituições de beneficência, as pessoas abastadas e os simples remediados, todos os que podiam, contribuíam com dinheiro, roupas, açúcar, arroz, ovos, leite, medicamentos, etc.

O Presidente da República, para quem por fim toda a gente recorria, até para a Benfeita, directamente e em resposta a um telegrama duma comissão local, enviou açúcar, arroz e 350 escudos em dinheiro!

Atacado nos últimos dias de Novembro pela terrível enfermidade, o antigo padre António Rosário, cujo estado se agravara a ponto de ser considerado moribundo e se esperar o seu falecimento a todo o instante, levantou-se misteriosamente, sem que meia dúzia de pessoas que velavam seroando numa saleta junto da porta da rua, o tivessem visto sair. Dado o alarme e procurado durante horas pela família e vizinhos, cujas lanternas cirandavam, como pirilampos, por toda a parte, foi afinal inexplicavelmente encontrado duas horas depois, metido na cama, quase sem dar acordo de si (6).

Os enterros dos mortos pela pneumónica faziam-se por ordem das autoridades, no mais curto prazo, sem irmandades ou acompanhamento, nem toque de sinos.

Os cemitérios estavam cheios. O da Corga não comportava mais sepulturas em princípio de Dezembro e os covais tiveram de começar a ser abertos no adro da igreja, no espaço ajardinado onde fora o primeiro cemitério da freguesia.

O altar de S. Sebastião, que se venerava - e venera - na igreja da Benfeita, estava permanentemente alumiado por muitas luzes e ornamentado com flores, e ninguém, que próximo passasse, deixava de ir ajoelhar-se e encomendar-se à sua protecção. Mas a mortandade era enorme e a dor geral, (7) pelo que as candeias, as lâmpadas e as flores, foram consideradas preito inferior à amplitude da acção e à fé dos seus devotos, por nove gentis raparigas - Maria dos Anjos Nunes, Adelaide Gonçalves, Maria d'Assunção dos Santos, Maria da Conceição, Maria d'Assunção Martins, Ricardina Feiteira, Maria d'Assunção Almas - que a si mesmo impuseram a realização, com o auxílio de toda a freguesia, de uma festa solene ao Mártir, com missa cantada, acompanhada a grande instrumental, e seguida de sermão e procissão.

E no domingo, 15 de Dezembro, a igreja encheu-se completamente e muita gente teve de ficar fora, no adro, junto das portas abertas de par em par. A missa, abrilhantada pela filarmónica «Pátria Nova», de Coja, foi cantada pelos padres António Quaresma, Albino Simões Dias Cardoso e Alípio de Almeida, e o sermão, que arrancou lágrimas à maior parte da assistência, recitado pelo padre Alfredo Nunes de Oliveira, antigo vigário da freguesia.

Na procissão tomaram parte, em andores devotadamente enfeitados, as imagens do costume - Nossa Senhora d'Assunção, Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora do Rosário e S.José - e ainda as de Santo António, Santa Rita e do Senhor dos Passos, que precediam a do festejado Mártir S.Sebastião.

Depois do Santíssimo, conduzido sob o pálio pelo padre Quaresma, marchava, tocando, a filarmónica, e depois, centenas de pessoas chorando e rezando.

Na segunda-feira, ao princípio da tarde, reuniram-se numa casa do Oiteiro as mordomas, com o sacristão José Augusto Gonçalves, «o Zuco», para contarem o dinheiro dos donativos e esmolas e apurarem as despesas a pagar; com grande satisfação verificaram que o dinheiro recolhido chegava para todos os encargos, e sobrava ainda para beneficiações no altar do Padroeiro.

Então, e ainda em louvor do Mártir, não sei qual das mordomas mandou queimar o resto de fogo que estava para ser devolvido, e uma dúzia ou duas de foguetes subiram ao ar assobiando, e fazendo repercutir pelos vales e encostas que rodeiam a Benfeita o alegre estralejar das suas «três respostas».

Por triste coincidência chegava nesse momento, ao «fundo», o correio, e com ele a notícia, que a todos entristeceu, do torpe assassinato, em Lisboa, do popular e estimado Presidente Sidónio Pais.

Dois ou três dias depois, preparava-se em Coimbra uma força de infantaria 23 para ir à Benfeita prender as pessoas «que em sinal de regozijo pela notícia da morte do malogrado Chefe do Estado, haviam queimado uma dúzia de foguetes»...

Assim haviam chegado deturpados os factos a Coimbra, e se não fora a intervenção esclarecedora e benfazeja de quem, por mero acaso, teve conhecimento da diligência e a evitou (8), bem provavelmente as gentis mordomas da festa ao Mártir S. Sebastião teriam passado pelo injusto vexame de visitarem Coimbra entre as baionetas reluzentes dos soldados.


Notas

(1) - As sete horas da manhã de sábado 12 de Outubro de 1918, sob o comando do seu coronel, infantaria 35. aquartelada em Santa Clara, saiu debaixo de forma e entrou de surpresa e tomou o quartel de artilharia 2, situado no mesmo edifício.
Ao mesmo tempo, o 2º grupo de Administração Militar, aquartelado junto da Avenida da República, revoltou-se também e, sob o comando do capitão Alcides de Oliveira, tomou o correio geral, a esquadra da polícia, o quartel da Guarda Nacional Republicana e o quartel general, onde surpreendeu e prendeu o comandante da divisão, general Jaime de Castro. Neste movimento tomaram parte dois segundos sargentos naturais da Benfeita, que fugiram para a terra quando o movimento fracassou; chamavam-se António Quaresma e Francisco Santos, tendo o primeiro falecido alguns anos mais tarde em Moçambique.Subir

(2) - O quartel de Infantaria 23 foi bombardeado por Artilharia 2, que atingiu o edifício e a parada com 15 granadas, caindo outras nas imediações, designadamente na Penitenciária. Os estragos, alguns no gradeamento do Jardim Botânico, foram insignificantes, mas o comandante do 23, coronel Pestana, rendeu-se logo, numa conversa telefónica com o coronel Mourão, comandante dos revoltosos.Subir

(3) - Circular do Bispo-Conde D.Manuel, de 8 de Outubro de 1918, divulgada em todos os jornais da diocese.Subir

(4) - Além das medidas de ordem médica, como desinfecção das mãos, nariz (fossas nasais), olhos e ouvidos, com solutos de ácido bórico e borato de sódio, repouso, muito agasalho, licor amoniacal anisado, cataplasmas de linhaça e mostarda, ou tintura de iodo, ou na falta de uma e outra coisa panos molhados em água bem quente, bebidas quentes, etc., o Bispo-Conde recomendou especialmente aos sacerdotes, a quem pedia muita solicitude na administração dos sacramentos aos enfermos e na assistência aos moribundos, que não levassem para casa dos doentes a âmbula principal dos Santos Óleos, mas sim que tomassem desta para
outra pequena o Óleo suficiente absorvido por algodão, de forma que, ungido o enfermo, pudesse ser queimado aquele algodão e purificada essa âmbula.Subir

(5) - Os médicos que se apresentaram e prestaram serviço em Arganil foram os Drs. António de Oliveira Guimarães e Artur Fernandes.Subir

(6) - O padre Rosário salvou-se e veio a falecer há cerca de 3 anos em Coimbra, depois de ter sido, em Arganil, ajudante do Oficial do Registo mCivil e secretário da Administração, e em Góis, chefe da secretaria da Câmara. Parece que ficou devendo a sua salvação ao acesso de febre que o fez levantar da cama e procurar a frescura da água da ribeira onde se teria ido meter no «poço da quelha», e onde não teria sido visto, quando a família ali o procurou, por se ter escondido sob um docel de silvas pendentes da margem esquerda. Entretanto, este episódio, ligado ao facto do doente ter renunciado ao seu munus sacerdotal e abandonado a Igreja, deixando de propósito crescer o bigode, facilmente sugestionou a imaginação do povo, levando-o a admitir e a acreditar, uma vez que ninguém tinha dado pela saída do moribundo nem pela sua entrada, em tenebrosas intervenções diabólicas que o teriam feito sair e entrar pela janela.Subir

(7) - Nos Pardieiros faleceram 16 pessoas, na Benfeita 5, na Relva Velha 9 e nas restantes povoações o número de óbitos devia aproximar-se de vinte.Subir

(8) - A pessoa que evitou a vinda à Benfeita da «diligência» em organização no Regimento de Infantaria 23, e a consequente prisão das mordomas e do Sacristão José Augusto, foi o Sr.Eugénio Moreira, Director do semanário «A COMARCA DE ARGANIL», que estando de passagem em Coimbra ouviu falar no «desacato» ocorrido na Benfeita, à chegada da noticia do assassinato do Chefe do Estado, e prontamente procurou as autoridades e as esclareceu da falsidade do boato que em Coimbra circulara.Subir