Jornal
de Arganil
05/09/1963
As
levadas de rega na freguesia da Benfeita
BENFEITA,
29 - Perdeu-se, por completo, do conhecimento dos homens e mesmo da tradição que nos veio dos tempos mais recuados, a
origem das "levadas" que, coleando as encostas, permitem o cultivo das inúmeras "quelhadas" que sobem das
ribeiras a alturas que fazem espanto.
Um corógrafo, cujo nome nos não ocorre de momento, afirma até que o nome da bem alcandorada e simpática povoação das Luadas
promanaria, não sabemos se com bom fundamento, da palavra "levada" que por corrutela se transformaria, primeiro em
"Leuadas" e, depois, pelo desaparecimento do "e" e mudança do "v" em "u", em
Luadas. Do mesmo modo há quem ligue, sabe Deus se com alguma verosimilhança, a existência de certas "levadas" à necessidade que os
povos antigos, designadamente os romanos, teriam de levar, por aquela forma, até junto das minas que abriram e exploraram, a
água indispensável à boa preparação dos metais desenterrados, pela separação, por lavagem, das terras, escórias e outras
aderências inúteis.
Fosse como fosse, as "levadas" que todos nós conhecemos, são cursos de água, preparados e mantidos pelos
homens, para regar as terras de cultivo, que sobem pelas encostas, afastando-se mais e mais da margem das ribeiras e que seriam
incultiváveis se não recebessem dessas artificiosas linhas de água, a linfa vivificadora e refrescante, que permitiu transformar
em húmus as terras matagosas.
Na Benfeita, as mais importantes "levadas" são: a das "almotaçarias" e a de "Santa Rita". A
primeira, que terá no seu longo e sinuoso percurso três quilómetros ou mais, colhe água da Ribeira da Mata, ao fundo
dos Pardieiros, próximo da Argunte e, depois de atravessar a Benfeita vai pelas terras chamadas da Mó, até perto do barroco da
Demieiro. A de "Santa Rita" trás a água da Ribeira do Carcavão, colhida no sítio do Prado, abaixo do Alagão, até às
quelhadas que ficam em volta da octogonal capela daquela Santa, num percurso que não deve ser inferior a um quilómetro.
Outra designação deveria ter antigamente esta "levada", talvez dos "Boiços" como por vezes
lhe ouvimos chamar em pequenos, porque a sua existência é indubitavelmente anterior à construção da ermida.
No princípio da época das regas reúnem-se os utentes de cada "levada", isto é, todos os proprietários ou rendeiros
das terras regadas por ela e, sob a direcção do "almotacel", designado anualmente pela Câmara Municipal, reconstituem o açude
ou presa na ribeira e reparam, em toda a sua extensão, o leito da "levada" para que não tenha fugas, obstruções,
desperdícios ou outros danos ou deteriorações, que prejudiquem o livre, conveniente e perfeito curso da água.
E se durante o Verão, qualquer malefício, proveniente da inconstância do tempo ou das forças da Natureza, vem prejudicar
as "levadas" ou a livre e conveniente circulação da água da rega, são ainda os utentes que acorrem a reparar os
danos e a reporem a "levada" em perfeito estado de funcionamento, como são eles que devem desimpedir o leito da
ribeira findo o período do regadio.
As "levadas" são, assim, uma curiosa forma de propriedade colectiva, que vem de tempos imemoriais e subsiste
ainda, quer consuetudinariamente, quer tornada regulamentar nos casos dos aproveitamentos hidráulicos ultimamente estimulados e
subsidiados pelo Estado.
Nem o facto de o "rebordo" ou "caminho", que em regra forma o resguardo do leito propriamente dito da
"levada", ter caído no domínio público e ser utilizado por todos em geral, utentes ou não, fez perder às
"levadas" a sua natureza e característica de propriedade colectiva de todos os regantes.
A palavra "almotacel" designava nos tempos medievais o oficial público que inspeccionava os pesos e medidas e fixava os
preços dos géneros; entre nós parece ter sempre significado apenas, o regente ou governador de cada uma das
"levadas" com a autoridade que lhe adivinha da entidade pública que o escolhia e nomeava. A sua remuneração era e é,
paga pelos utentes da "levada", em géneros e na proporção do valor das terras regadas ou das suas colheitas.
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