HISTÓRIAS DA NOSSA TERRA |
A "QUEIMA DO GATO" por: Vivaldo Quaresma
Devo, porém, esclarecer as pessoas mais sensíveis ao nome desta tradição "Queima do Gato" que os gatos não eram sacrificados nem queimados vivos, pelo menos na Benfeita e a fazer fé no que me foi dito, embora esta tradição possa ter tido a sua origem nos povos pagãos que sacrificavam, por imolação, inicialmente pessoas e depois animais, nas suas homenagens aos deuses, embora também acredite que algumas pessoas, mais modernamente, acidentalmente ou por inexperiência nos procedimentos, por excesso de álcool no sangue ou por pura malvadez, pudessem ter praticado algum desmando que tivesse conduzido a um final mais “quente e chamuscado” para os pobres bichanos. Convém também lembrar, já agora, que há gatos que gostam tanto do calor das fogueiras que, no Inverno, até se metem dentro das lareiras de sala, tão perto das brasas que até queimam os bigodes e dormem encostados aos irradiadores eléctricos. Portanto, o calor não os assusta e gostam mais do calor do que de qualquer outra coisa. Também são dotados de uma enorme agilidade física e de equilíbrio, o que lhes confere a capacidade única de caírem sempre sobre as suas patas e a faculdade de poderem vencer quedas de alturas consideráveis, graças ao seu fraco peso e à enorme elasticidade e musculatura das suas longas pernas e patas que contêm umas almofadas que funcionam como amortecedores de impacto quando aterram. Isto só para mencionar algumas das suas capacidades, para além das suas míticas e famosas "7 vidas", dito que, ao fim e ao cabo, resume todas essas extraordinárias capacidades físicas do gato! Portanto, cair de uma altura de 3 ou 4 metros, embora não pareça uma "brincadeira de crianças", também é coisa que não os assusta verdadeiramente.
Devo aqui fazer uma breve, e necessária, declaração de interesse pois gosto muito de gatos e já fui criador da raça siamesa, o que me permitiu conhecer profundamente a sua fisiologia animal, embora corra com os vadios que me vêm “sujar” o quintal, onde tenho plantadas flores, legumes e ervas aromáticas. A designação de “Queima do Gato” faz lembrar a “Queima do Madeiro” ou a “Queima das Fitas”, de Coimbra, em que, efectivamente, os ditos-cujos ardem completamente. Daí, a imediata repulsa de muita gente por esta antiga tradição, principalmente pessoas que, como eu, nunca assistiram ao vivo, a nenhuma “Queima do Gato”. Contudo, lembremo-nos, de outras designações onde “queimar” é apenas informal e figurativo, não se queimando coisa nenhuma, como: “queimar o tempo”, “ter o nome queimado”, “passar à queima”, “queimar as pestanas”, “queimar o salário”, “queimar calorias”, ou “estar queimado (bronzeado)”, por exemplo.
A QUEIMA DO RATO
Vem
a propósito contar uma história que, não sendo tradição
nem tendo nome próprio, bem se poderia chamar, e com toda a propriedade,
“A Queima do Rato”, com R! Caçar ratos na tropa, quando os havia, era uma coisa perfeitamente compreensível por todos, tal como caçar baratas ou percevejos, porque era um acto de sobrevivência, pois estes animaizinhos podem transmitir doenças, para além de serem nojentos e ninguém desejar a sua companhia repugnante; mas, matá-los daquela maneira!?...
«À volta da ratoeira de arame fizeram um círculo com gasolina
que despejaram de um jerrycan, com mais ou menos 3 metros de
diâmetro. Depois, regaram os ratos com gasolina, atearam fogo ao círculo
e abriram a portinhola da ratoeira. Queimar
ratos? Comer gatos? Pois, por mais estranho que nos pareça...
tudo depende! Recordo-me também que, quando em miúdo, eu ia passar as férias grandes à Benfeita, notava que muita gente falava "mal" português, trocando os V's pelos B's. Detestava quando me chamavam "Bibalde", o que me fez começar a detestar o meu nome! Diziam-me que quem falava assim eram "os bimbos, que não iam à escola e eram analfabetos". Mas, isso, não só não terminou nos dias de hoje como ainda virou tradição! Agora, muita gente com instrução superior e até muitos professores de Português, continuam a trocar os V's pelos B's e têm orgulho na sua pronúncia do 'Nuorte', como se isso lhes conferisse uma personalidade própria, uma característica distintiva, e lhes outorgasse algum estatuto de superioridade linguística sobre os "mouros" do Sul. Ou seja, aquilo que no meu tempo era considerado fruto da ignorância, hoje é, para alguns, um real motivo de orgulho!
A TRADIÇÃO
Um
dos preparativos para a grande festa popular na Benfeita, estava a
cargo da rapaziada do lugar que, para além de cortarem a madeira para
a grande fogueira, escolhiam um pinheiro aprumado e esguio que desse,
depois de aparado e limpo, para fazer um poste com cerca de 4 a 5
metros de altura. A assistência vibrava de satisfação e alegria com a brincadeira pois a tradição ficava cumprida e o gato estava bem. O gato não se queimava porque o fogo nunca podia entrar dentro do cântaro, a não ser que ele tivesse o azar de aterrar em cima de alguma palha a arder que se tivesse soltado do poste e lhe chamuscasse o pelo, embora com pouca probabilidade disso acontecer. Muitas outras aldeias do norte de Portugal celebravam esta tradição nas festas populares do Carnaval e pelo São João; mas este ritual, com algumas variantes, era comum em vários países da Europa, remontando à época Celta, embora destas suas crenças e rituais ligados aos deuses, onde se incluíam ofertas e sacrifícios, nomeadamente os relacionados com o calendário e com as estações do ano, pouco se saiba, apenas que existem algumas evidências das suas práticas. Muitos outros países, como: a China, a Coreia do Sul, o Vietname, a Índia e a Indonésia, por exemplo, ainda olham para os gatos e para os cães como quem olha, em Portugal, para os coelhos como comida! E eu digo isto com alguma mágoa porque adoro comer coelho e sei que existem muitos portugueses que tratam os coelhos com o mesmo carinho que eu dedico aos gatos. Outrossim, em 44 dos 50 estados americanos, ainda é permitido matar cães e gatos para a alimentação humana e, em algumas tribos americanas, ainda se podem matar cães e gatos para cerimónias religiosas.
REFLEXÃO
Hoje, o fogo não tem o mesmo significado que tinha antigamente antes do aparecimento da electricidade e do gás engarrafado. As pessoas lidavam com o lume a todo o momento, numa relação de grande proximidade. Também não havia água canalizada, pelo que, nos arraiais, bailaricos e convívios nocturnos, havia muitos cântaros com água e com vinho e várias fogueiras, para cozinharem, para se aquecerem, para se iluminarem e para brincarem. E o fogo fazia parte de muitas tradições e diversões antigas, onde se incluíam os malabarismos com tochas e bolas de fogo e saltar a fogueira. Tal como o cão, o gato sempre conviveu com o homem devido ao seu comportamento sociável, afectuoso e ternurento, tendo sido objecto de culto nas mais antigas civilizações. Mas, o gatos, têm características físicas que os distinguem dos outros animais, para além da sua elegância de movimentos, sendo natural que nas terras onde não os comem nem lhes fazem mal, como era o caso da Benfeita, eles existissem em grande número. Ora, com fogueiras, cântaros e gatos por todo o lado, e conhecendo bem as características físicas do animal, era natural que os jovens daquele tempo também tivessem arranjado brincadeiras com gatos, não necessariamente para lhes infligir qualquer dano físico mas, essencialmente, para passarem o tempo e se divertirem, dado que, naquela época, nem lhes passaria pela cabeça o que seria isso de telemóveis, internet ou redes sociais. Meter um gato num cântaro e deixá-lo cair de uma altura de 3 ou 4 metros não pode causar qualquer dano sério a um animal com as características físicas do gato, pois se o agarrarmos pelas patas e o suspendermos de barriga para o ar e o largarmos a uma altura de um metro do chão, ele, mesmo nessa curta distância, consegue virar-se, em décimos de segundo, e cair sempre sobre as 4 patas. O fogo na palha era só a maneira de criar um automatismo que, ao fim de algum tempo, queimasse a trança de palha que prendia o cântaro ao poste e o libertasse, criando um ambiente de expectativa e emoção. No final, as pessoas riam-se, aplaudiam e deixavam o gato seguir a sua vida vadia. Este tipo de "brincadeira", na opinião de uns, ou de "tortura", na opinião de outros, só seria possível com gatos e com cântaros de barro, pois considera as características físicas destes e daqueles. A um só tempo, o cântaro ao cair no solo parte-se, absorvendo a maior parte da força do impacto, permitindo que o gato saia em liberdade sem qualquer impedimento. No entanto, o cântaro não pode ser nem demasiado duro, que não se parta, nem demasiado pequeno, que não permita movimentos ao gato, embora os gatos adorem estar, e se movimentem bem, em espaços pequenos e apertados. Nós gostamos das tradições populares embora não concordemos, particularmente, com qualquer tipo de maus tratos que provoquem dor, sofrimento ou morte, sejam eles infligidos a animais de companhia ou outros, em espectáculos públicos ou privados, ou a pessoas (homens, mulheres, crianças, idosos e recém-nascidos), onde se incluem as praxes académicas, militares ou maçónicas. E achamos que todo o tipo de violência gratuita ou tortura, que revele estupidez criminosa, deve ser banida e socialmente condenada, embora isto não se aplique aos animais que consumimos na nossa alimentação, cuja morte deve ser, tanto quanto possível, rápida e indolor, e em matadouros especializados, ou praticada por gente competente e responsável.
A "CARROÇA DOS CÃES"
Durante a minha juventude, nos anos 50-60 do século passado, as ruas de Lisboa eram percorridas semanalmente por carroças camarárias especialmente preparadas para a recolha de cães vadios que eram capturados na via pública por pessoal especializado. Utilizavam umas redes próprias para a captura dos animais (uns paus compridos com uma grande argola de ferro na extremidade donde pendia um saco de rede com que os apanhavam), ficando à guarda do canil municipal, onde eram abatidos e enviados para o Jardim Zoológico para servirem de alimentação aos carnívoros dominantes (leões, tigres e crocodilos) caso fossem considerados vadios errantes e não fossem reclamados pelos seus donos, os quais teriam de ser portadores de uma licença de canídeo e pagar uma multa, que seria agravada caso o cão não tivesse uma coleira identificativa. Este foi o procedimento camarário vigente durante muitos anos, felizmente também já extinto, embora nunca tivesse chegado a merecer honras de "tradição" lisboeta.
CONCLUSÃO
Algumas pessoas consideram que a "Queima do Gato" foi uma tradição condenável porque desconhecem todo o envolvimento em que essa tradição era festejada, afirmando que «os povos do interior eram bárbaros e atrasados porque torturavam e matavam os gatos e os coziam num cântaro», descrevendo desta maneira uma tradição que nunca viveram, negando assim as suas próprias origens, só para darem força às suas convicções ecologistas onde se encaixa, o fim das touradas, da caça aos javalis, da matança do porco, do tiro aos pombos, das caça às rolas, etc. e das manufacturas em pele, com pêlo e ossos de animais. Apesar de estarmos 100% contra qualquer tipo de violência intencional e desnecessária contra pessoas e animais, também somos 100% a favor das tradições culturais do nosso povo, pelo que temos de saber distinguir a verdade dos factos, dos secretos intentos de algumas pessoas que ampliam e distorcem os nossos costumes tendo em vista os seus objectivos pessoais escusos e absconsos. Elas, ou desconhecem completamente a tradição, e falam do que não sabem, ou mentem deliberadamente com um falso propósito em mente. Não alimentamos qualquer ressentimento anti-ecologista, principalmente no que respeita o controlo da poluição ambiental e a preservação da qualidade do meio ambiente, na estreita medida em que isso seja necessário à vida e à felicidade das Pessoas, mas não divinizamos nem os Animais nem a Natureza. Isso sim, são coisas de um passado... muito distante! Ver também: |
|