O
amolador Armando Lopes, natural da Mata da Margaraça (Benfeita),
conta-nos um pouco da sua vida desde que esteve a servir no Monte
Frio.
por:
GIL DUARTE
Ia
eu a sair de casa, quando o pequeno João me perguntou, implorativo:
— Tens sete e quinhentos (7$50)?
Os sete e quinhentos eram para a mãe do João pagar a
despesa ao amolador que se encontrava à porta, à espera,
junto da roda do seu ofício de inspiração medieval.
— Vou com pressa! — digo eu, a despachar.
Oh! A terrível pressa com que se vive na cidade!... Mas não
posso deixar de saudar o amolador que tem todo o aspecto de homem
simples e bom, trabalhador e honrado, respeitador e paciente — de
homem das nossas serras!
Mas não! Não é com certeza das nossas serras,
pois não me consta que haja conterrâneos nossos, dados
àquela profissão.
Aí é que está a prova de que "só
sabemos que nada sabemos". Há, sim, senhores! Há
amoladores entre os homens da Serra. E este é um deles! Anda
de rua em rua, na cidade, conduzindo a sua roda e tocando a gaita.
Tudo como nos bons tempos em que se não falava nem de energia
atómica, nem de televisão.
Depois
do «Bom dia!», a que o amolador responde com um sorridente e acolhedor,
«Muito bom dia nos dê Deus», disparo uma série de perguntas:
— É da Galiza?
(Saibam os senhores que os amoladores eram, e são, quase todos
galegos... da Galiza. Até há esta coisa interessante
quando os amoladores começam a andar mais pelas ruas... dizem
as pessoas: «Temos chuva!».
O caso é este: os amoladores da Galiza ficam lá pela
terra deles durante todo o Verão. Quando o Outono vem, descem
a Lisboa. E então, chove, naturalmente, porque é o tempo
das primeiras chuvas. Daí o dito «Temos chuva», quando os amoladores
começam a andar pelas ruas de Lisboa).
O
amolador responde:
— Não senhor, não sou da Galiza. Sou de Coimbra.
Aqui, ponho-me em sentido. Os homens da nossa terra começam
por dizer, em regra, que são de Coimbra.
— De Coimbra, é como quem diz? — indago, curioso.
— Bem, sou do distrito. A minha terra é Arganil...
— Arganil? O senhor é de Arganil?
— De Arganil não é bem... Sou mais da Benfeita.
— Mesmo da Benfeita?
— Mesmo da Benfeita, também não, senhor. Sou da Mata
da Margaraça. Aí é que eu nasci.
Bom tempo em que a Mata dava uns valentes moios
de milho...
Então, identifico-me. O amolador fica radiante.
Mede-me com os olhos. Acha-me mais qualquer coisa (ou menos) do que
ele idealizava.
Vamos andando para o café mais próximo, o do Manuel,
de Coelhal (Pessegueiro), em Sapadores.
E as perguntas sucedem-se:
— Como se chama?
— Armando Lopes.
— Quantos anos tem?
— Cinquenta e seis.
— Porque nasceu na Mata da Margaraça?
— A Mata era do Sr. António Joaquim, de Avô. Meus pais
estavam lá de feitores. No tempo — bom tempo — em que a Mata
(da Margaraça) dava uns valentes moios* de milho...
— Como se chamavam, ou chamam, os seus pais?
— Chamavam-se. Infelizmente já morreram: António Lopes
e Maria do Nascimento. O meu pai era de Sobral Gordo e a minha mãe
de Parrozelos.
— Tem irmãos?
— Oito. Na Mata nasceram quatro e os outros quatro em Parrozelos.
— E onde vivem os seus irmãos?
— O mais velho, o António, no Monte da Caparica; o José,
é empregado nos Serviços Florestais de Arganil, cantoneiro,
ou o que é, e vive nos Parrozelos; o Eduardo, vive também
nos Parrozelos; a Maria Rosalina vive no Paço do Lumiar, aqui
em Lisboa; depois sou eu; a Aurora vive em Xabregas; o Mário,
em Lisboa; e o Manuel, em Parrozelos.
— Sabe ler, Sr. Armando?
— Nunca fui à escola. Sei qualquer coisa que aprendi mais tarde.
— E que idade tinha quando deixou a Mata da Margaraça?
— Oito anos.
— Para onde foi?
— Fui servir, para o Monte Frio. O meu traballho era guardar gado.
Ganhava, no primeiro ano, o comer e o beber. No segundo, o comer,
o beber e cinquenta «paus».
— E depois?
— Depois, fui para servir em casa do padre António Quaresma,
na Dreia.
Farturas que eram uma miséria...
— Que fazia em casa do padre Quaresma?
— Tratava dos bois, do cavalo, e ia como ele pi'aquém e pi'além.
Ganhava cem «paus» por ano, comer e beber, vestir e calçar.
Aprendi a ler alguma coisa com ele. Era boa pessoa. Tinha o seu génio,
mas tudo passava. Quando o arreliavam, chegava a desafiar as pessoas
para a porrada. Era como uma trovoada!
— Ficou lá muitos anos?
— Seis. Depois disso, vim para Lisboa. Olhe, desandei por aí
abaixo, com uns rapazes. Empreguei-me nas farturas, com o Artur das
Farturas, de Folques. Estive aí até ir para a tropa.
A minha vida era andar nas ruas, com um carro, a vender farturas.
Mas as farturas eram uma miséria.
— Onde fez a tropa?
— Em Lisboa. Aí aprendi a ler definitivamente. Acabada a tropa,
empreguei-me num depósito de ovos de meu primo João
Gonçalves, dos Parrozelos. O lugar (loja) era na rua de Santa
Marta. Fiquei aí três anos. Depois casei.
— Donde é a sua mulher?
— Da Mourísia. Chama-se Maria da Assunção Lopes.
Casámos cá em Lisboa, em Santa Engrácia. Ora,
o serviço dos ovos era muito pesado. Percorria a cidade com
caixas de ovos de sessenta e setenta quilos, em grandes cestas, às
costas. Adoeci. Gastei, para me tratar, todo o dinheirito que tinha
amealhado à custa de tanto suor. Fiquei sem nada. Resolvi ir
para amolador.
— Amolador? Porquê?
— Já percebia qualquer coisa da arte. Em miúdo tinha
tido lições com um rapaz de Parrozelos e sobretudo como
o meu primo, Mário Gonçalves, que tinha comprado uma
rodazinha e eu aprendi.
— Comprou também uma roda?
— Era a primeira coisa a fazer, claro! Mas como a podia comprar se
não tinha um centavo? Pedi a uns e a outros, mas não
mo quiseram emprestar. E ainda por cima, minha mulher estava grávida.
Isto a gente passa cada uma nesta vida!... O que eu queria era uma
roda para ganhar para comer. Ora a roda custava trezentos escudos.
Lá consegui que o meu irmão mais velho me emprestasse
cinquenta escudos. Com outras ajudas, comprei uma roda, já
velha, em Cascais. Comecei a trabalhar. Ia para a província,
por essas estradas fora, dormia aqui e ali... Fiz três viagens
assim, sempre a pé, aos Parrozelos. Se lhe contasse tudo o
que aconteceu... Mas é impossível, nesta conversa. Isso
dava um romance dos valentes...
Atribulações de um amolador provinciano
Talvez possa lembrar um ou outro episódio...
Pois olhe, de uma vez vi-me à rasca para dormir,
em Óbidos. Havia uma família boa que dava pousada, num
palheiro, a ambulantes como eu. Informaram-me:
Vá lá, àquela gente, que eles lhe darão
guarida.
Fui. O dono da casa disse-me:
Olhe, meu amigo, não lhe dou dormida. E não dou
por isto: Outro dia deixámos cá pernoitar um homem que
passava e o sujeito, de manhã, desarvorou, e levou consigo
todos os cobertores que lhe tínhamos emprestado para ele não
passar frio. Sabe o senhor como é, não sabe? Pagam uns
pelos outros...
Eu encolhi os ombros. Mas o homem olhou bem para mim, e disse:
O meu amigo tem bom aspecto... Pois bem, vai cá dormir,
mesmo. Mas não vai nada dormir ao palheiro. Dorme cá
em casa e janta ao pé da gente.
Assim foi. Boa gente, aquela...
Doutra vez, no tempo da guerra, ia eu cheio de fome
ali para os lados de Pombal. Cheio de fome e fartinho de andar a pé,
caramba! Não encontrava nadinha para comer. Cheguei lá,
a uma taberna, e perguntei ao homem:
Não se arranja aí uma «bucha»?
O homem disse-me:
O que tenho ali é um bocado de bacalhau cru e um pouco
de pão. Se quiser...
Se queria!... Comi. De noite, no palheiro, Santo Deus, deu-me cá
uma destas sedes... Eu julgava que morria de sede. Fui lá fora
beber água a um poço, ou melhor, a uma pia, como estas
que servem para os porcos beberem. De manhã voltei lá.
Ena pá! A água era tão suja e tinha lá
dentro "carneiros" (larvas) tão grandes... Só
queria que visse... Mas tudo é por Deus, não me aconteceu
mal nenhum.
Agora, trabalha apenas em Lisboa?
Sim. A minha zona é esta da Graça, do Bairro
América, de Alfama...
Vai ganhando o suficiente?
Há dias bons e há dias fracos.
Da nossa região há mais amoladores?
Sim. Ora, deixe-me ver: sou eu, é o Mário (meu
irmão), é o Fernando (meu sobrinho), é o António
Costa, é o Diamantino Marques (estes só no Inverno).
E não me lembro de mais, não.
Que fazem o Costa e o Diamantino, no Verão?
Trabalham nas feiras e fazem algodão doce. Aprenderam
comigo, pois já tive um restaurante na Feira Popular, a Casa
das Bolinholas.
Tem filhos?
Dois. Um rapaz e uma rapariga. O rapaz vive em São Domingos
de Rana, Cascais. A rapariga vive na América, em Nova Jersey.
Já a lá fui visitar. Estive um ano na América.
Não há país como o nosso...
Gostou da América?
Para lhe dizer a verdade, não há país
como o nosso! Isto aqui vale mil vezes mais do que aquilo, lá.
Ainda uma pergunta que já devia ter sido feita: Que
trabalhos costuma fazer como amolador?
Pois, consertar toda a ferramenta de corte (facas, tesouras,
navalhas), guarda-chuvas, panelas, tachos, louças e vidros.
E também vendo as melhores facas do País. E é
isso...
Tínhamos feito uma despesa no café do
Manuel, do Coelhal, e o Sr. Armando Lopes prontificou-se a pagar tudo.
E com tão boa vontade que muito me penhorou. Não contente
com isso, quis obrigar-me a dizer que iria almoçar a sua casa,
na Travessa do Recolhimento Lázaro Leitão (Santa Engrácia).
Pois está certo, bom amigo. Temos de nos tornar a juntar
para continuarmos esta nossa conversa. Entretanto, felicidades, muitas
felicidades para si e para todos os seus.
GIL DUARTE
C.A. 12/05/1973
*Moio - Unidade de medida antiga equivalente a 60 alqueires.
OS "DEITA-GATOS"
Muitos
amoladores acumulavam o seu saber com o modesto ofício dos
"Deita-Gatos", que consistia em consertar loiça
partida, tipo: pratos, tigelas, bacias e alguidares, com agrafes metálicos,
que podiam ser em arame de ferro ou de aço os chamados
"gatos".
Os pedaços da loiça quebrada eram colados
no sítio certo, furados com uma furadeira manual e apertados
com gatos de metal aquecido, por forma a devolver-lhe a sua forma
e propriedades originais, o seu uso e durabilidade.
Era um verdadeiro trabalho de artista artesanal, com
séculos de existência, que utilizava utensílios
rudimentares e que imediatamente permitia avaliar o grau de perfeição
e de inspiração do seu executante.
Muitos exemplares originais, gateados, chegaram aos
nossos dias expostos em museus ou decorando paredes de casas antigas,
testemunhando em autenticidade um passado que se pode considerar já
distante, desde o aparecimento das super-colas e das resinas epoxi
que garantem colagens duradoiras, resistentes ao choque, ao calor
e à água, com preenchimento de fendas e juntas, e podendo
ser lavadas à mão ou à máquina.