HISTÓRIAS DA NOSSA TERRA |
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SENHOR MESTRE... por: Vasco de Campos Por uma noite clara e fria de Janeiro, mais uma vez tive de subir o meu calvário de serras, lá para as bandas do Açor.
Neste jornadear a desoras, o silêncio da montanha só era quebrado pelo estalar dos caramelos sob as ferraduras da mula que me transportava, guiada pelo zelo habitual do Severino Espanhol. Nessa noite, como em tantas outras, era esse arrieiro exímio o fiel depositário da minha vida, nesses trilhos ínvios de barrancos e precipícios. Já os galos cantavam matinas quando chegámos a um casalejo desgarrado entre pinhais e tojeiras. Pasmei, ao encontrar gente em tal fojo! A árvore humana - por um milagre de adaptação - é capaz de fixar raízes em qualquer valeiro destas serras, onde brote um manancial e haja chorume que baste para emparedar duas leiras. A dar testemunho deste milagre, ali estavam aqueles pobres serranos, em convívio insólito com raposas e gatos-bravos. Eram três ou quatro choças, alapadas entre o mato, cobertas por lousas negras e tendo como único respiradouro a porta da rua e um buraco no telhado, tapado com uma rodela de cortiça enfiada num pau, em jeito de chapéu-de-chuva. Ao contemplar esta arquitectura primitiva, julguei-me por momentos recuado às épocas distantes dos nossos avós trogloditas. O casebre onde entrei tinha uma antecâmara alcatifada de carquejas, recentemente dispostas para visita de cerimónia. Aí fui saudado por uma velha, curvada como uma espiga de trigo em seara madura: Venha com Deus, Senhor Mestre! Veja se salva a minha filha! A filha era a parturiente que jazia num catre no compartimento a seguir, onde penetrei curvado como a velha, porque de pé daria com a cabeça nas lajes do telhado. O barbeiro da área - outro mestre como eu, no conceito da velha - tinha passado na véspera e lavrara uma sentença: Tem a criança agarrada às costas! Não pode nascer! Apeguem-se com a Senhora do Bom Parto... E lavou dali as mãos como Pilatos... E ainda bem! Observei a mulher e cheguei à conclusão que era necessária a aplicação de forceps. Tiro os ferros do estojo e começo a separar os que iriam servir. A velha, atenta ao meu trabalho, mirava e remirava aquele arsenal reluzente, para ela desconhecido e temível. A certa altura, dispara a pergunta: É com isso que vai abrir a minha filha? E saiu porta fora num berreiro infernal que acordava todos os ecos da montanha! Enquanto procedia à intervenção, que realizei com êxito para ambas as partes, tive sempre nos ouvidos as invocações da velha, soltas aos quatro ventos, a todas as santas de perto e de longe, desde a Senhora do Bom Parto até à Santa Eufémia, de Paranhos.
E para concretizar o seu reconhecimento, tirou de um armário um rabo-de-bacalhau e pô-lo a cozer num pucarito, à lareira, para a minha dejejua. Era a gratidão a desabrochar em hospitalidade, à sua maneira. Entretanto, o marido da parturiente, pede-me as contas. Condoído com a penúria circundante, levo uma quantia ridícula como honorários pelo meu serviço. A velha, porém, apercebe-se do quantitativo - para ela fabuloso! - empertiga-se, finca as mãos nos quadris, fuzila-me com os olhitos remelados e exclama: Arre, diabo! O Senhor Mestre é entendido, lá isso é, mas careiro como um raio que o parta! E, dirigindo-se à lareira, retira o púcaro do lume. Eu já não era digno do rabo-de-bacalhau... Desço a serra, a caminho de casa, com a maldição da velha a picar-me na consciência. Tranquiliza-me o meu companheiro Severino, com a sua filosofia de experiência feita: O Senhor doutor levou-lhe muito pouco! Olhe que a velha tinha um taleigo de notas a um canto da arca! São manhosos... Aprendem com as raposas...
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SERRA! Caminhos dum médico Veja
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