As alcunhas, na Benfeita!
por: Vivaldo Quaresma
Desde os tempos de antanho que, na
Benfeita, era hábito rotular as pessoas com alcunhas. Era como a designação
do clã familiar. A alcunha, uma vez criada e "colada", estendia-se
a todos os membros da família: ascendentes, descendentes e colaterais,
perdendo, muitas vezes, o seu significado inicial. Todos eram englobados
na alcunha, o que constituía, por assim dizer, um autêntico "brasão
familiar".
Desde a família com mais posses à mais
necessitada, ninguém era poupado na Benfeita; no entanto, os Mathias
(com th), por exemplo, foram dos poucos cujo nome familiar foi respeitado,
pois ninguém ousava alvitrar outro nome a esta ilustre e poderosa
família de advogados, políticos e diplomatas, embora, mesmo assim,
ainda houvesse quem os referenciasse pela sua área de residência,
uma vez que havia Mathias na zona do "Perna de Pau", no bairro do
"Oiteiro" e na aldeia "Relva Velha".
Até mesmo o Dr. Mário Mathias, membro importante desta
família com escritório de advocacia na capital, refere
"com toda a naturalidade", e para que não pudessem
haver dúvidas ou confusões com outras pessoas, as alcunhas
pelas quais eram conhecidas as pessoas referidas nos seus textos e
crónicas, uma vez que os nomes se repetiam com muita frequência
na aldeia, mas as alcunhas, não, eram únicas! (Mas,
nem sempre)!
Uma das pessoas que mais se distinguiu
na nossa terra como "especialista" em atribuir alcunhas
aos outros foi António Nunes da Costa, também ele conhecido
por "Brotas", falecido em 2001, com 88 anos de idade. Ele
era um caso de alcunha dupla, posto que pertencia ao clã dos
"Maçarocas", que já era a alcunha do seu irmão
José Nunes da Costa.
Mas as alcunhas também podiam
surgir no seio familiar com diminutivos ou expressões carinhosas,
ou no meio escolar, principalmente se o visado tivesse alguma característica
na sua personalidade ou fisionomia que o distinguisse, por ser feio,
gago, gordo ou magro demais.
O ritual das alcunhas era quase que
imperativo porque, nessa época, havia muita gente na terra
e quando se queria referenciar alguém através do seu nome próprio,
não era tarefa fácil, pois havia muitos com o mesmo nome e apelido
e, por essa razão, tinha de se encontrar uma forma para facilmente
se poder identificar uma pessoa. Mas, às vezes, uma alcunha criada
de modo informal, nem sempre é um epíteto que se fundamenta no local
de nascimento, na profissão ou na qualidade mais notável de
uma pessoa. Ela identifica um indivíduo de acordo com uma característica
pessoal, física ou moral, destacando-a negativamente, como por exemplo:
maneta, perneta, coxo, careca, mudo, aleijadinho, ceguinho, suão,
brioso, etc. que, não sendo, regra geral, bem aceite pelo próprio,
era por ele consentida com alguma indiferença e tolerância.
A maior parte das alcunhas eram cognomes
derivados das actividades profissionais de cada um, como, por exemplo:
moleiro, sacristão, sapateiro, padeiro, carteiro, barbeiro, ferreiro,
coveiro, modista, colhereiro, cauteleiro, cantoneiro, etc. Outras
eram derivadas de conceitos comportamentais, como: péssimo, fala-tenrinho,
boticas, fagueira, piriscas, fadista, poeta, rendas, pica-chouriços,
sapacuja, lé-lé, badoco, etc.
Até os habitantes das povoações recebiam
denominações especiais ou gentílicos, a designar a sua origem, como
por exemplo: os Balseiros (da Benfeita); Espicha-sapos (da Deflores);
Cavaleiros (do Enxudro); Caiados (das Luadas); Negritos (do Monte
Frio); Berrumões (do Pai-das-Donas); Ralhadores (dos Pardieiros);
Penteadinhos (da Relva Velha); Casaquinhas (do Sardal); Lambazes (da
Cerdeira); Magusteiros (da Esculca); Bezerros (de Côja); Ratos (de
Avô); Pintassilgos (de Arganil), etc. - Mas, isto, até era
uma coisa natural, porque até os lisboetas já eram conhecidos por
"alfacinhas" e os portuenses por "tripeiros".
Mas, nem sempre as alcunhas eram pacificamente
aceites pelas pessoas visadas. Alguns detestavam-nas e recusavam a
associação do seu nome a termos insultuosos e vexatórios; mas, quanto
mais protestavam, mais a alcunha se lhes colava, principalmente quando
havia discussões ou zaragatas. Algumas alcunhas eram, mesmo, cruéis
e de muito mau gosto, como: sobe-e-desce, maria bigode, cabeça-de-porco,
cagueira, caga-telhados, caga-na-bota...
E, muitas vezes, ela podia ser tão
cruel que indignava e revoltava as pessoas visadas, podendo determinar
um corte de relações pessoais; levar à marginalização do convívio
dessa pessoa, proporcionando a sua fuga ou deserção
da aldeia ou, mesmo, originar comportamentos negativos que podiam
terminar em suicídio ou em reacções igualmente
violentas, geradoras de desacatos que podiam terminar em sangue e
morte.

O CRIME DA BENFEITA
Fez 90 anos que Joaquim Alves, da Cerdeira,
também conhecido por Joaquim "Relvas", de alcunha "caga-na-bota",
foi preso por ter matado à facada o seu cunhado, Alfredo Bernardo,
da Benfeita.
Foi um crime de violência brutal que chocou as pessoas
da aldeia e toda a comunidade benfeitense espalhada pelo país, corria
o mês de Janeiro, de 1929.
A
mania das alcunhas era um hábito recorrente na nossa aldeia
e, a bem dizer, em todas as aldeias do nosso país; no entanto,
muitas vezes, as pessoas visadas nem sempre gostavam do epíteto
e reagiam violentamente, principalmente quando o álcool se
lhes misturava com o sangue.
Eis,
aqui, uma história dramática, verdadeira, arrepiante, que recolhemos
no jornal «A Comarca de Arganil»:
NA BENFEITA
Um
rapaz de 26 anos mata, à navalhada, um seu cunhado de 22 anos
Benfeita,
27 - Um crime horroroso de assassinato, que manteve toda a noite
de sexta para sábado todos os ânimos abalados de comoção, foi
levado à prática com requintes de canibalismo, nesta freguesia,
por um tal Joaquim das Relvas.
O
cadáver da infeliz vítima, que se chamou Alfredo Bernardo, foi
hoje autopsiado no Cemitério da Cerdeira, e dali, para onde
tinha seguido, foi novamente removido para esta localidade,
sendo sepultado pelas 17 horas.
É
grande ainda o espanto que se nota em todas as fisionomias.
Na próxima correspondência pormenorizarei.
Côja,
27 - Acabámos de chegar da Cerdeira onde assistimos à autópsia
de Alfredo Bernardo, cobardemente assassinado anteontem na vizinha
freguesia da Benfeita. Conseguimos ali ouvir algumas pessoas
da Benfeita e eis o que nos contaram:
"Durante
o dia de sexta-feira, Joaquim Alves, o "Joaquim Relvas", do
lugar da Cerdeira, filho de José Alves, o "José Relvas" e de
Mariana da Silva, de 26 anos, casado com Lucinda da Gama Leitão,
da Benfeita onde vive, estivera na taberna de Artur Dias & Irmão,
a jogar as cartas. À noite a Lucinda mandou-o chamar ao que
ele não obedeceu.
Pouco
depois foi ela chamá-lo e ele disse-lhe que já ia. Como não
aparecesse, a Lucinda voltou a chamá-lo, fazendo-se acompanhar
duma filha dos dois, de 2 anos, a quem o "Relvas" pegou ao colo.
Demorou-se ainda algum tempo e veio depois ter a casa do Sr.
Antonino Gonçalves, onde andava um baile motivado pelo casamento
de um cunhado do Relvas e que se realizara na véspera. Ali bebeu
alguns copos de vinho e dirigiu-se à casa do sogro para, dizia,
o matar. Como ele já estivesse na cama e lhe não falasse, foi
para casa, onde barafustou com a mulher, espancando-a barbaramente.
Quis o acaso que nesta altura aparecesse o Alfredo Bernardo
que ia para casa da namorada e que era em frente da casa do
Relvas. Como ouvisse os maus tratos que ele infligia à irmã,
disse-lhe que ao outro dia falariam. O Alfredo entrou para casa
da namorada, Aida Mendes Correia de Frias, filha de Manuel Simões,
com quem devia casar na próxima quinta-feira, não se lembrando
decerto mais do cunhado. Talvez passado mais duma hora, aparece
o Relvas à porta do Simões chamando com muito bons modos o Alfredo,
que lhe disse não o atender. Como ele insistisse em lhe querer
falar e sem suspeitar da cilada que o Relvas tinha armado, desceu
para o ouvir. Porém, o Relvas, logo que o Alfredo abriu a porta,
e ao escuro, vibrou-lhe uma enorme facada no ventre que lhe
fez sair todo o intestino delgado e que também furou. Uma vez
o Alfredo no chão, deu-lhe mais duas facadas de respeito, uma
no fundo do esterno a meio do apêndice xifóideo, e uma outra
nas costas que lhe cortou o diafragma, o baço e o pericárdio.
A
navalha devia estar bem afiada e ser de grandes dimensões a
avaliar pelo tamanho e profundidade dos golpes dados com todos
os requintes de ferocidade. A seguir à sua proeza fugiu, deixando
os tamancos no local do crime. As meias, deixou-as junto à igreja
da Benfeita, onde passou na sua fuga desordenada para a Cerdeira.
Aqui, bateu à porta do regedor José Augusto d'Almeida, a quem
pediu para o deixar ficar em sua casa, pois queria divorciar-se
da mulher e não queria ir mais à Benfeita. O José Augusto, sem
suspeitar da fera que tinha na sua presença, aconselhou-o a
ir para casa dos pais e que ao outro dia falariam sobre o caso.
Qual não foi o seu espanto quando ali lhe aparecem uns cabos
da Benfeita à procura do bandido. Cercaram-lhe então a casa
e prenderam-no, fazendo-o conduzir à cadeia de Arganil. Pela
atitude do povo da Benfeita, quer-nos parecer que se o selvagem
não tivesse fugido, ali receberia a justa compensação do seu
trabalho.
Este
crime despertou nesta região a maior repulsa, talvez por estarmos
habituados a eles se não darem. É o primeiro na comarca de Arganil
de há 30 anos para cá; praticado com tanta ferocidade cremos
mesmo que nunca haveria. O assassinado, que gozava das maiores
simpatias, era filho de Joaquim Bernardo e de Maria da Assunção
Leitão, contando só 22 anos de idade. Era muito bom rapaz, pelo
que era por todos deveras estimado.
Eis
a largos traços o que conseguimos averiguar. Depois de nós falará
a Justiça, que não deixará de punir severamente aquela fera
indigna de pertencer à raça humana. O cadáver do inditoso Alfredo
voltou para a Benfeita seguido de enorme acompanhamento, lamentando
todos a sua triste sorte.
-
Elvas.
CA
1516_2-29/01/1929
|

A tragédia da Benfeita
Sr.
Director de "A Comarca de Arganil":
-
Permita-me V. que eu venha dizer duas palavras sobre a reportagem
deste crime, que vem sendo um tanto deficiente, com prejuízo
da opinião que a imprensa é destinada a orientar.
O
preso foi sempre optimamente comportado. Que haja a primeira
pessoa que o acuse de um acto de maldade.
Seus
velhos pais, honrados e dignos, deram-lhe a educação da humildade
e do trabalho, que sempre o norteou. Apenas lhe notavam, de
vez em quando, umas perturbações, que toda a vizinhança atribuía
à meningite que o atacou em criança. Essas perturbações acentuavam-se
quando bebia vinho.
O
crime foi obra de um desespero grande, que o pôs fora de si
durante um pedaço de tempo.
Foram,
por um lado, os insultos intempestivos da mulher (que motivaram
a intervenção de alguns vizinhos, censurando-a) e por outro,
o desafio que lhe foi fazer à porta o infeliz morto, seu cunhado,
vexando-o não só com ameaças, mas também com a alcunha irritante
de "caga na bota". Isto, talvez
para se solidarizar com a irmã, talvez para se mostrar corajoso
e valente diante da noiva, que mora ali mesmo.
A
verdade é que se trata de um crime passional, de um crime de
desespero, de um crime de ocasião, e não de um crime frio, premeditado.
Basta dizer-se que sempre se deram bem, o preso e o morto, tendo
até o preso ido nessa manhã, à Cerdeira, buscar um cesto de
ovos para a boda daquele. Talvez que, por isto mesmo, o desafio
e o vexame custassem mais ainda a sofrer ao Joaquim Alves. Nenhuma
desconsideração nos abala tanto, como uma desfeita vinda de
pessoa que julgávamos amiga.
Foram
as perturbações da doença e de algum vinho que trazia, juntas
com os insultos da mulher e somado tudo aos vexames e ao desafio
do cunhado, que puseram o Joaquim Alves fora de si.
Quero
que me respondam a esta pergunta: Se não existissem os insultos
da mulher e se não existisse o vexame e o desafio do cunhado,
o Joaquim Alves teria cometido tal crime?
Não,
pois até tinha ido, de manhã, buscar um cesto de ovos para o
casamento dele.
A
referência que os jornais fazem ao regedor da Cerdeira, também
não está conforme aos factos. O Joaquim Alves foi entregar-se
voluntariamente ao regedor, contando-lhe a desgraça que acabava
de suceder. Confessou o seu crime. Estes os factos.
Não
pretendo dirimentes para o meu constituinte, nem preciso da
piedade alheia para encher os olhos de água perante as desgraças.
Sei
muito bem quanto pesa, em toda a gente, o luto desta tragédia.
Mas
quero que se diga a verdade toda, com dignidade e com consciência,
como se estivéssemos aos pés de Deus.
Não
roubemos ao desgraçado preso as atenuantes que acompanharam
o seu acto desvairado, porque elas são hoje, desprezado de todo
o mundo, talvez a sua única riqueza.
De
V. , etc.,
-
O advogado, José Elias Gonçalves.
CA
1518_2-05/02/1929
|
"Caga-na-bota"
é um remoque, uma expressão jocosa com carga ofensiva, insultuosa,
que pretende ridicularizar ou vexar alguém. Desconhece-se a exacta
origem desta expressão ou a razão pela qual ela servia de alcunha
ao Joaquim Alves; mas, salvo melhor opinião, um indivíduo que promete
fazer alguma coisa ou algo, a alguém, e depois não cumpre; isto é:
"arrepia caminho" ou "mija-se", pode ser considerado um "caga-na-bota".
O que não é a mesma coisa que "caga-na-saquinha",
"caguinchas" ou "cagarolas", alcunha dos medrosos,
ou "caga-lérias", alcunha dos aldrabões, fala-barato.
É muito mais agressiva!
Assim, ao matar o cunhado, o Joaquim Relvas quis mostrar-se
um homem de palavra, negando a nova alcunha; isto é, cumprindo
a ameaça que lhe havia feito: matá-lo! Porque ele não
era um "caga-na-saquinha" e, muito menos, um "caga-lérias"!
A tragédia da Benfeita
Continua
a trazer o povo vivamente impressionado, sendo, por isso, ainda
o assunto de todas as conversações na freguesia da Benfeita,
o crime da noite de 25 para 26 do mês findo, em que perdeu a
vida um rapaz de 22 anos, o Alfredo Bernardo, e levou à cadeia
o Joaquim Alves (o Joaquim Relvas).
Para
deporem no processo, têm sido chamadas ao tribunal desta comarca
muitas pessoas daquela freguesia.
A
navalha com que o assassino perpetrou o crime, já foi encontrada
na ribeira que passa na Benfeita, em frente da casa do Sr. António
Francisco Nunes (o Péssimo).
A
Lucinda da Gama Leitão, mulher do Joaquim Relvas e irmã do assassinado,
tem andado tresloucada, pretendendo suicidar-se, atirando-se
para precipícios. Há poucos dias ainda, indo ao cemitério, atirou-se
de um muro alto que ali há, ficando bastante maltratada.
CA
1519_1 - 08/02/1929
|

Ainda a tragédia da Benfeita
Côja,
13 de Fevereiro de 1929.
Sr.
Director de «A Comarca da Arganil»:
No
seu nº 1518 publicou A Comarca uma carta do ilustre advogado
Sr. Dr. Elias Gonçalves, classificando de deficientes as reportagens
feitas sobre este nefando crime. E porque nos sentimos visados
como repórter muito humilde que a esse crime se referiu, eis
o motivo do nosso aranzel de hoje.
S.
Ex.ª pretende apresentar-nos o Relvas como um cordeirinho
sem mancha, uma inocente vítima decerto da maledicência do povo
e dos informadores dos jornais; e não é bem assim.
Estamos
de acordo que tenha sido bem comportado, mas só até que a ferocidade
dos seus instintos pôde bem pôr-se em cheque. E são assim quase
todos os criminosos.
Dizem-nos
pessoas da Benfeita que ele, por qualquer coisa que lhe fizessem,
premeditava logo a vingança.
Mas
isto não vem para o nosso caso. Deixamo-lo à apreciação dos
dignos magistrados que hão-de julgá-lo.
Pretende
S. Ex.ª convencer a opinião pública (e está bem, é o seu papel
de advogado) de que o crime não teve premeditação e derivou
apenas do insulto do Alfredo lhe chamar caga na bota.
Se
assim era, devia o Relvas ter matado toda a gente, porque ninguém,
por assim dizer, o tratava por outro nome. Se foi por isso,
porque não veio o Relvas defrontar-se com o cunhado imediatamente?
Porque, só passada cerca de uma hora, quando os bons sentimentos
do Alfredo tinham já decerto esquecido o incidente, ele veio
à porta chamá-lo de bom modo para cobardemente o agredir?
Pelo
menos durante este tempo ele teve ocasião de premeditar bem
o que ia fazer. Depois, fugiu para a Cerdeira e, diz ainda S.
Ex.ª, decerto mal informado, que ali se apresentou ao regedor.
Ora
isto não se passou assim. Ele, chegado à Cerdeira, foi ter com
o primo José Augusto de Almeida, que por acaso é o regedor,
pedindo-lhe para dormir na loja do ofício em cima do banco,
visto que tinha tido umas desavenças com a mulher e queria ir
divorciar-se. O José Augusto disse-lhe que fosse para casa dos
pais, e ao outro dia teriam tempo de pensar no caso.
Foram
deitar-se, e qual não foi o espanto do regedor quando de madrugada
lhe bateram à porta os rapazes da Benfeita e lhe contaram o
que se passara. Dirigiu-se a casa dos tios e ali tentou ainda
arrancar a confissão ao assassino, não o conseguindo.
Ainda
desta vez negou a proeza, que só confirmou depois do
José Augusto lhe ler o ofício do seu colega da Benfeita.
Foi
assim que o dissemos na reportagem do crime, é assim que hoje
o confirmamos e foi assim que no-lo contaram as pessoas da Benfeita.
Se tivemos termos ásperos para com o criminoso, eles foram ditados
pela nossa consciência, pois nem contra nem a favor nos movem
interesses de qualquer ordem.
Estamos
plenamente de acordo que o Sr. Dr. Elias procure todos os meios
para defesa do seu constituinte, mas isso pode S. Ex.ª fazê-lo
sem tocar na reportagem que, creio, não é obrigada a pensar
como pensa S. Ex.ª, ou a liberdade de consciência seria um mito.
Desculpe-nos
S. Ex.ª estas considerações que julgámos precisas para que os
leitores não ficassem a pensar que colhemos informações levianamente.
Estamos sujeitos a errar, mas quando o reconhecermos também
seremos o primeiro a rectificar o que fôr de justiça.
E
V.Ex.ª, Sr. Director, desculpe a massada do que é, etc.
-
Elvas.
CA
1520_3-15/02/1929
|

O Crime da Benfeita
É julgado no dia 7 de Maio, em tribunal colectivo,
o assassino
Foi
designado o dia 7 de Maio próximo, pelas 12 horas, para julgamento
em processo ordinário de querela, de Joaquim Alves, conhecido
também por Joaquim Relvas, casado, da Benfeita, que se acha
preso na cadeia desta comarca pelo crime de homicídio voluntário
praticado no dia 25 de Janeiro último, na pessoa de Alfredo
Bernardo, solteiro, da mesma localidade, crime este que A
Comarca noticiou oportunamente.
O
defensor do acusado é o Sr. Dr. Marcelo Matias, novel e distinto
advogado na capital.
Neste
julgamento intervêm os juízes de Arganil, Lousã e Oliveira do
Hospital.
CA
1536_1 - 16/04/1929
|

O
epílogo da tragédia da Benfeita
Realiza-se
hoje, no tribunal desta comarca, o julgamento do assassino
Vai
hoje ter o seu epílogo, no tribunal desta comarca, a tragédia
de que foi teatro a pitoresca e laboriosa povoação da Benfeita
e em que perdeu a vida Alfredo Bernardo, assassinado por seu
cunhado Joaquim Alves, mais conhecido por «Joaquim Relvas»,
natural da Cerdeira e ali residente.
Já
nas colunas do nosso jornal fizemos desenvolvido relato deste
crime, mas como dentro de poucas horas lhe vai ser dado um epílogo,
evoquemo-lo novamente em rápidas palavras:
Durante
o dia 25 de Janeiro findo o «Relvas» passou parte
do dia na taberna dos Srs. Artur Dias & Irmão, da Benfeita,
jogando às cartas com outros.
À
noite, a mulher dele, Lucinda da Gama Leitão, mandou-o chamar,
e como ele não fizesse caso, foi ela, levando ao colo uma filha
de ambos, de 2 anos.
Apesar
disso, o «Relvas» ainda se demorou algum tempo na
taberna e, saindo, dirigiu-se a casa do Sr. Antonino Gonçalves,
aonde andavam dançando, por motivo do casamento dum seu cunhado,
o qual tinha tido lugar na véspera.
Bebeu
alguns copos de vinho, dirigindo-se em seguida para casa do
sogro, para o matar, segundo dizia, mas como ele já estivesse
na cama e lhe não falasse, seguiu para sua casa, onde barafustou
com a mulher e a espancou.
Por
acaso, nessa ocasião apareceu o Alfredo Bernardo, que ia para
casa da namorada, Aida Mendes Correia de Frias, que era em frente
da casa do «Relvas», e ouvindo os maus tratos que
este infligia à mulher - que era irmã do desventurado Alfredo
Bernardo - este dirigiu-se ao «Relvas» e disse-lhe
que ao outro dia falariam.
Depois
o Alfredo foi para casa da namorada, com quem devia casar na
quinta-feira seguinte.
Passada
pouco mais de uma hora, chegou à porta da casa da referida Aida
de Frias, o «Relvas», que com bons modos chamou
o Alfredo, recusando-se este a princípio a atendê-lo. Como,
porém, ele insistisse, e não suspeitasse da cilada que lhe tinha
armado, veio falar-lhe.
Logo
que o Alfredo abriu a porta, estando escuro, o «Relvas»
vibrou-lhe uma enorme facada no ventre, que lhe fez sair todo
o intestino delgado, que também furou.
A
vítima caiu por terra, dando-lhe ainda o «Relvas»
mais duas facadas, uma no fundo do externo a meio do apêndice
xifóideo, e outra nas costas que lhe cortou o diafragma, o baço
e o pericárdio.
A
cena passara-se cerca das 11 horas da noite, e o pobre Alfredo
exalava o último suspiro às 3 da madrugada.
O
povo da Benfeita ficou impressionadíssimo com o crime e pode
dizer-se que ninguém ali dormiu naquela noite.
A
seguir à proeza, o assassino fugiu para a Cerdeira, aonde no
dia seguinte foi preso e conduzido para esta vila, recolhendo
à cadeia e sendo mais tarde pronunciado sem fiança.
O
assassino tem-se conservado na cadeia desta comarca, e como
tivesse constado que ele se gabara de que não seria julgado,
porque se evadiria, tem sido vigiado de noite por uma patrulha
da Guarda Nacional Republicana.
Hoje,
pois, no nosso tribunal, o Relvas responderá e será julgado
- podendo os leitores de A Comarca de Arganil acompanhar
o julgamento por intermédio da reportagem que publicaremos no
próximo número.
CA 1542_7 - 07/05/1929
|

O
crime da Benfeita
Foi
adiado o julgamento, por motivo de doença do juiz de Oliveira
do Hospital
Dia
7 - Manhã chuvosa, com frio, que convida a não sair de casa.
No entanto, das 9 horas em diante vêem-se chegar dos lados
das estradas de Côja e Folques grandes ranchos de homens e mulheres.
Pergunta-se:
-
Para onde vai tanta gente?
-
Vêm assistir ao julgamento do Joaquim Relvas, da Benfeita, que
matou o cunhado, o infeliz Alfredo Bernardo.
E
continua a romaria... Às 10 horas e meia, a Praça Simões Dias
está cheia de gente de todas as freguesias, pode dizer-se.
No
entanto, a porta do tribunal conserva-se fechada.
Pelas
11 horas chega o Sr. Juiz da Lousã, Dr. Antero Henriques Oliveira
Cardoso. Dirige-se à Secretaria Judicial. Lá encontra o Sr.
Dr. Luís Mendes, meritíssimo juiz desta comarca e o ilustre
Delegado do Procurador da República Sr. Dr. António Sequeira
Sottomayor.
À
porta do tribunal está uma força da Guarda Republicana, sob
o comando do cabo Sr. António da Fonseca e Sousa.
Meio-dia
menos um quarto, e cada vez mais povo na Praça, à espera que
a porta do tribunal se abra.
Faltavam
10 minutos para o meio-dia quando o Sr. Juiz ordena ao oficial
Sr. Diamantino Varandas:
-
Vá indo para o tribunal, abra a porta e recomende ao comandante
da força que só deixe entrar uma pessoa de cada vez, e só as
que couberem nas bancadas, sentadas; de pé, não quero ninguém.
Compreende-se
esta ordem, porque sabendo o estado de ruína em que está o tribunal,
não seria de estranhar que com tal avalanche de gente, se toda
entrasse, o sobrado desabasse. Nesta altura recordámos a triste
tragédia da escola de Pomares, e por isso aplaudimos a ordem
dada.
Entretanto,
o meio-dia aproxima-se, mas nada de chegar o juiz de Oliveira
do Hospital.
-
Vamos indo para o tribunal - diz o Sr. Dr. Juiz Mendes - pois
o colega não deve tardar.
Seguem
os três magistrados e no gabinete vão esperando. À porta, a
guarda, a custo contém a multidão; mas a ordem é de não entrar
mais ninguém estranho ao tribunal, porque as bancadas estão
já cheias; e essa ordem é cumprida.
No
gabinete espera-se. O advogado do réu, que é o Sr. Dr. Armindo
Barata, de Aveiro, consulta o processo, toma apontamentos.
Ao
ouvir-se uma buzina, sai de todas as bocas esta frase: - Lá
vem ele! - Mas é mais uma desilusão.
Alvitra
o Sr. Coutinho, escrivão do processo:
-
Se V. Ex.ª quer, Sr. Dr. Juiz, manda-se um telegrama.
-
Pois faça-o lá, com nota de urgente - responde o Sr. Dr. Juiz.
O
oficial Travassos sai à pressa a levar o telegrama. Tudo espera,
todos dizem coisas, e de Oliveira do Hospital não vem resposta.
Vão todos estando já aborrecidos com a demora, e começa a alvitrar-se
o adiamento.
Mas
o Sr. Dr. Marcelo Matias, que estava presente e no julgamento
se fizera substituir pelo seu colega referido, Sr. Dr. Barata,
talvez para evitar a vinda cá outro dia, deste seu amigo, conta
coisas, e pede mais uma meia-hora de espera.
O
Sr. Juiz da Lousã, responde:
-
Vá lá, espere-se então mais meia-hora.
Mas
esta decorre e depois outra meia, até que às 15 horas chega
um telegrama dizendo que o Sr. Dr. José de Campos Pais do Amaral,
conservador e juiz substituto em exercício, em Oliveira, não
podia vir por motivo de doença.
Pouco
antes passara na Praça o Sr. Dr. Júlio Pereira de Melo, juiz
proprietário de Oliveira, que regressava a reassumir as suas
funções, mas que não podia intervir por nesse dia terminar a
sua licença.
Teve,
pois, que ser adiada a audiência para dia a fixar, visto que
tal só pode fazer-se de forma que não coincida com dias em que
os dois magistrados, da Lousã e Oliveira, já tenham serviço
designado nas suas comarcas.
Em
virtude disso aquela gente começou a debandar para as suas terras,
lamentando-se por ter vindo de tão longe e não ter assistido
ao julgamento. E a completar a pouca sorte daquela gente, daí
por pouco tempo caía uma forte chuvada.
CA
1543_2 - 10/05/1929
|

O autor do crime da Benfeita
foi
condenado a pena maior
Pouco
antes do meio-dia de anteontem começou a chegar gente a esta
vila que vinha assistir ao julgamento. Entram em vários estabelecimentos.
Falam, conversam sobre o crime. Vão-se chegando para a porta
do tribunal a fim de serem os primeiros a entrar, não desejando
ninguém ficar na rua.
Ao
meio-dia é aberta a porta e o povinho entra, ávido de apanhar
um bom lugar, entrada que é regulada pela força da Guarda Republicana.
As bancadas encheram-se rapidamente, pouca gente ficando na
rua, porque veio muito menos de metade da que cá esteve no dia
7, em que o julgamento foi adiado como noticiámos.
Aquela
gente, na ânsia de ver o epílogo desta tragédia e lembrando-se
muitos dos serviços que nas suas terras deixaram por fazer,
espera impaciente. Pouco depois da 1 hora da tarde, constitui-se
o tribunal.
A
constituição do tribunal
O
tribunal, que funciona com júri colectivo, tem a seguinte constituição:
Presidente
- Sr. Dr. Juiz Luís Mendes, desta comarca.
Vogais - Srs. Drs. Antero Rodrigues d'Araújo Cardoso, da Lousã,
e Júlio Pereira de Melo, de Oliveira do Hospital.
Delegado do Ministério Público - o Sr. Dr. António Fernando
Sequeira Sottomayor.
Defende o réu - o Sr. Dr. Armindo Barata, de Aveiro.
Escrivão - o Sr. Pereira Coutinho.
Está
aberta a audiência!
Pela
1 hora e meia da tarde, o Sr. Juiz presidente ordena ao oficial
Diamantino Varandas que declare aberta a audiência. O réu dá
entrada na sala. Toda a gente o encara e repara na maneira como
se apresenta, com ares de quem não mede as responsabilidades
que sobre si pesam.
O
Sr. Dr. Armindo Barata, defensor do réu, apresenta a contestação
frisando as atenuantes e prisão preventiva.
O
Sr. Juiz presidente manda que o escrivão leia as peças do processo,
o que ele cumpre. São mandadas recolher as testemunhas.
O
réu, como já temos noticiado, é julgado pelo crime de homicídio
voluntário, com premeditação, na pessoa do seu cunhado, Alfredo
Bernardo, de 22 anos, na noite de 25 de Janeiro último, na Benfeita.
Interrogatório
do réu
De
pé, responde chamar-se: Joaquim Alves, casado, com Lucinda da
Gama Leitão, de 26 anos, natural da Cerdeira.
Seguem-se
outras perguntas da praxe a que ele responde confessando o crime
de que é acusado.
Falam
as testemunhas
São
ouvidas 9 testemunhas de acusação: Manuel Simões Dias, casado,
de 40 anos, da Benfeita; Laura do Sacramento ou Laura do Rosário
Simões, casada, de 43 anos, da Benfeita; Aida Simões, solteira,
de 17 anos; Artur Dias, casado, da Benfeita; Manuel Marques
Mendes, casado, de Pomares, residente na Benfeita; Augusto da
Silva, Augusto Gonçalves e António Maria, casados, da Cerdeira;
e José Augusto d'Almeida, regedor, da mesma localidade da Cerdeira.
Foram
lidos os depoimentos das testemunhas Artur Rosário Dias d'Oliveira,
Aires da Costa Prata e Adelino Nunes da Costa, que foram inquiridas
por deprecada.
Foi
uma prova esmagadora a produzida pela acusação, pois com mais
ou menos variantes todas referiam o mesmo facto, isto é, de
ter havido premeditação na prática do crime.
São
15:25 e o Sr. Juiz presidente declara interrompida a audiência
por 5 minutos, findos os quais é reaberta, começando a ser inquiridas
as testemunhas de defesa.
Testemunhas
de defesa
Foram
inquiridas sete testemunhas de defesa: Júlio da Costa, viúvo,
da Cerdeira; Serafim Gabriel, da Cerdeira; Maria Augusta Rita,
casada, de 36 anos, da Cerdeira; Cristiano Domingos, casado,
e Carlos Castanheira, solteiro, da Cerdeira; António Bernardo
Quaresma, casado, da Benfeita; Guilherme da Fonseca, casado,
da Benfeita.
Faltaram
as testemunhas de defesa, Maria Pilar que não foi intimada e
Luís Figueira que apresentou atestado.
O
crime foi tão repugnante, tão estranhável nas freguesias da
Benfeita e Cerdeira, que até as próprias testemunhas de defesa,
pela veracidade dos factos, se transformaram em acusação. Apenas
o bom comportamento anterior abonaram. É que o crime foi praticado
em tais circunstâncias que indignou toda a gente.
Terminou
a inquirição das testemunhas às 16:25 e o Sr. Juiz presidente
dá a palavra ao digno agente do Ministério Público.
Os
debates
O
ilustre magistrado, depois de apresentar os seus cumprimentos
aos meritíssimos juízes, expõe com clareza as condições em que
o crime foi praticado, lê as conclusões dos peritos e termina
por dizer que o réu não pode deixar de ser condenado como pediu
na querela.
É
dada em seguida a palavra ao advogado do réu, o Sr. Dr. Armindo
Barata, que é a primeira vez que vem a este tribunal, e começa
por saudar os doutos juízes e magistrado do Ministério Público.
Refere-se à povoação da Benfeita, que conhece, não por lá ter
ido, mas porque sendo companheiro em Coimbra, quando estudante,
do Sr. Dr. Marcelo Matias, um filho daquela freguesia, em várias
ocasiões tiveram ocasião de falar dela.
Faz
o elogio desse filho da Benfeita que honra a sua terra, o qual
pelo seu talento há-de marcar no foro. Entrando na defesa do
réu, procurou atenuar-lhe a pena; mas a defesa era ingrata,
ante a prova esmagadora produzida.
O
Sr. Dr. Barata fala com clareza, tendo sido escutado com muita
atenção por todo o auditório. Eram 17 horas quando terminou
o seu discurso, sendo interrompida a audiência para ser lavrada
a sentença.
Sentença
Passados
quarenta e cinco minutos, é reaberta a audiência, sendo lido
o acórdão que condena o réu na pena de 9 anos de prisão maior
celular seguidos de 12 anos de degredo, ou em alternativa de
26 anos e meio de degredo em possessão africana de 1ª classe,
e em 2.000$00 de imposto de justiça.
CA
1547_2 - 24/05/1929
|

Para
a Penitenciária de Coimbra
seguiu o autor do crime da Benfeita
Acompanhado
dos oficiais de diligências deste juízo, Srs. Joaquim Nunes
Rodrigues Branco e António da Fonseca Travassos, seguiu ontem
para Coimbra, a fim de dar entrada na Penitenciária, Joaquim
Alves (ou Joaquim Relvas), da Benfeita, que, como noticiámos,
foi condenado nesta comarca em pena maior por ter assassinado
seu cunhado Alfredo Bernardo.
CA
1556_2 - 25/06/1929
|

O
autor do crime da Benfeita
Regressaram
já de Coimbra os oficiais de diligências que foram àquela cidade
acompanhar o preso Joaquim Alves (ou Joaquim Relvas), da Benfeita.
Este deu entrada na cadeia de Santa Cruz.
CA
1557_8 - 28/06/1929
|
O
Joaquim Alves não gostava da nova alcunha que lhe haviam posto, e
que o deixava fora de si, até porque já era conhecido por "Relvas",
razão pela qual o seu cunhado Alfredo Bernardo, irmão da sua mulher,
nunca a deveria ter pronunciado.
Por
isso, o corpo do malogrado infeliz Alfredo Bernardo deu entrada no
cemitério da Benfeita, na flor da sua juventude, com apenas
22 anos de idade, enquanto que o desgraçado do Joaquim Relvas
deu entrada na Cadeia Regional de Coimbra, em 24/06/1929, em cumprimento
de uma pena de 26 ½ anos por homicídio voluntário, tendo
sido transferido para Lisboa, em 03/12/1929, a fim de aguardar destino
para África, desconhecendo-se se se evadiu, como havia prometido
antes, se ali cumpriu pena efectiva ou se foi degredado para alguma
colónia africana.
Faleceu
em 25/12/1979, com 77 anos de idade, tendo sido sepultado no Cemitério
da Cerdeira, aldeia onde nasceu e onde, 50 anos antes, o seu cunhado
havia sido autopsiado.
VIVALDO QUARESMA
31/12/2019
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