HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Texto publicado n'A COMARCA DE ARGANIL
em 05/12/2019, por CARLOS DA CAPELA

BENFEITA "A VIDA DOS OBJECTOS"

Uma gamela, um pau e um pião

Carlos da CapelaEnvelhecemos também com os objectos e suas memórias que guardamos e que evocam e nos fazem reviver o já vivido.

Neste ajuntamento de coisas que depositamos no fundo das nossas gavetas, eles, os objectos guardados, vivem à espera que neles descubramos outras virtudes, novos valores e amores revelados no sarro que o tempo neles, e em nós, depositou. Objectos que são referências íntimas, pedaços do vivido que não nos largam.

Além de produtos da nossa estima, da nossa apreciação estética, da nossa compreensão cultural, esse objectos, artefactos, são homenagem a tantos amigos, lembram-nos como presença constante, testemunhos da nossa vida. Afectos.

Desses objectos, guardo uma grande gamela de minha avó Amabília e depois usada por muito tempo pela tia Patrocínia, onde se fez a melhor broa que este cristão que vos escreve algum dia comeu.

Quantas lembranças me traz esta gamela, feita decerto pelos cavaleiros do Enxudro! Grande, bonita, muito acetinada pelo tempo e pelo uso. Quantas evocações me traz, tantos são os caminhos do pão, que são os caminhos da vida! Quanto pão benzido com o acostumado "Eu te acrescento..."!

Quanta labuta e fome e privações e tudo o mais que fazem destas gentes os heróis desses tempos tão adversos. A busca do pão e da vida está bem cicatrizada nas levadas que contornam a nossa serra, sejam elas da ribeira da Mata ou do Carcavão. O forno da tia Augusta em alegre alvoroço nos dias de fartura e de festa!

Tantas evocações me traz esta gamela que serviu a família tantos e tantos anos desde a herança do Padre Mestre, passando pela bondosa avó Marquinhas, até às mãos da santa Amabília e da não menos santa tia Patrocínia.

O tio BertoEstes objectos, estas memórias assim os acho nas inúmeras histórias e diversas informações que recolhi dos longos serões com meu tio Alberto. Com o desaparecimento deste meu tio, perdeu a Benfeita um inestimável tesouro. Era o tio Alberto (de alcunha "o Tetas", que nunca o incomodou) duma curiosidade insaciável, por tudo se interessava, com uma ilimitada paixão pela Benfeita e por tudo o que a valorizava e distinguia. E, claro, a cidade do Porto e o Porto (clube) estavam sempre presentes nas suas primeiras paixões. Guardava histórias curiosas e contava-as com pilhéria colorida e sempre tirava delas lições de proveito e moralidade, ensinamentos que lhe dava a vida vivida de muita curiosidade e observação. O cuidado com que seleccionava as histórias e as escolhia era de fina inteligência e de um sentido estético requintado e de um humor sagaz. Era um homem de cultura. Leiam esta e façam o vosso juízo.

Contava-me ele numa dessas noites de lareira e conversa sem fim:
«Um dia o meu irmão Adelino, homem engenhoso e aberto a novidades e ao progresso, chamou à sua estimada Quinta do Espinho um encartado engenheiro, sabedor de vinhos e de tudo quanto ao vinho diz respeito. Viu as videiras, analisou a terra e o sol, as castas e depois vendo como se faziam as podas e seus retorcidos e gemidos e desenho de arcos e arquinhos, que faziam lindos desenhos nas encostas do Espinho, ensinou outra maneira de fazer, mais rápida, mais cómoda e mais rentável. Quietos e mudos, os da assistência viam e ouviam o engenheiro. No fim, o tio Brotas, homem experimentado, de mestria reconhecida, podador de mão-cheia, disse:
- Ó senhor engenheiro, apesar de tudo isso, vamos continuar a fazer a poda como costumamos fazer.
- Mas porquê? - perguntou o outro.
- Porque a nossa maneira é mais bonita!»

Tenho contado esta história em variadíssimas ocasiões, onde a acho oportuna, e tenho tirado com ela muito proveito, e proveito tiram todos os que a ouvem.

Não é pela beleza que nos havemos de salvar? - como referia "dostoievskianamente" o Dr. Fernando Valle?*

Que exemplo magnífico de inteligência em reter esta história como digna de ser contada e retida na memória de todos como exemplo de bom proveito que dela devemos tirar. A isto chama-se sabedoria.

Aqui mesmo a meu lado o pau do tio Maçarocas que o O meu pião! Artur resolveu oferecer-me. Este pau muito polido de tanto ser acariciado pelas mãos do tio Maçarocas. Homem curioso, ledor de jornais, de piada fácil e pronta, um bom homem do lugar, que exerceu vários cargos públicos, de exemplar participação e vida cívica. Recordo-o percorrendo diariamente o caminho da Teixogueira, sempre e só em busca do pão nosso de cada dia. Quantas recordações estão neste pau de amieiro, irmão das minhas tamancas, como ensina a cantiga, feitas decerto no Sardal...

No fundo da gaveta, um pião enorme ali está sempre à minha espera... é o meu pião, feito por meu saudoso primo Marcelo Oliveira, ali está há mais de 50 anos, e ainda hoje espera que o abrace com a minha guita e o lance com a mesma alegria e a muita mestria com que o fazia rodar no Largo do Areal. Recordo o torno onde foi feito, à direita de quem entrava na carpintaria do tio Alfredo, com "lettering" e tudo, pois então!

Quanto engenho e amor não pôs o Marcelo na execução deste maravilhoso e único brinquedo, com que carinho ele mo ofereceu! E, Quim Zé, este pião também é teu. Estes objectos fazem parte de mim, de nós, sou eu e somos nós neles, vivo e vivemos neles e por eles.

CARLOS DA CAPELA

* Referência à famosa frase profética "A beleza salvará o mundo" dita no romance autobiográfico "O Idiota", de Fiódor Dostoiéwski (1821-1881), escritor e filósofo russo, fundador do existencialismo e considerado como um dos maiores romancistas da história.

 

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