Pela
Freguesia da Benfeita
Recordando…
Vem de tempos muito antigos o aforismo, dizendo-se ainda, "voz
do povo, voz de Deus". Vem das eras em que o "português" não
se falava ainda, e as populações da Península Ibérica foram
vencidas e dominadas pelas Legiões Romanas, que aqui viveram,
implantaram um regime novo, político, militar, administrativo,
agrícola até e "civilizando" o mundo ibérico-hispânico, lhe
deram os seus usos e costumes, as suas instituições, religião,
língua, etc...
Foi nesses velhos tempos que, na sua língua latina, estabeleceram
e ensinaram a máxima aforismática "vox populi vox Dei",
em que hoje muita gente acredita ainda, sem hesitação.
Ora, nos finais do século passado, ocorreu aqui, inesperada
e espantosamente, um crime de morte, facto incrível, quase absurdo
nas nossas aldeias, por contrário à índole pacata, pacífica
mesmo, da nossa gente, que pode ralhar, fazer grande gritaria
e berratas, barafustando com grande cópia de gestos, imprecações
e juramentos mais ou menos maléficos e praguentos, mas não passam
daí. Por isso, embora o apodo ou alcunha de ralhadores
se tenha apegado apenas aos Pardieiros, bem poderia aplicar-se,
sem ofensa ou melindre, a toda a freguesia...
Foi o caso que apareceu morto, com um tiro, num pinhal, no
sitio "Volta do Santo", entre a Corga e a Teixogueira, um homem
de nome Cristiano, de profissão alfaiate que regressava de trabalhar
nas Luadas, de casa de um freguês, como era de uso na época,
e ia a caminho de casa, junto à Dreia!
O "povo", aparecido o cadáver, enquanto um ou outro cogitaria
talvez sobre a razão do assassinato e sobre o possível matador,
logo acusou da nefanda e perversa acção um pacífico cidadão,
chamado Augusto Nicolau, em casa de quem o morto estivera a
trabalhar.
E todo o mundo, "a voz do povo, a voz de Deus" afinal, acumulando
hipóteses e convicções, e "provas"... acusou convicto o Nicolau!
E as autoridades de Arganil vieram prendê-lo, enclausurando-o
na cadeia comarcã, que ocupava o rés-do-chão dos Paços Concelhios,
em permanente exposição para quem passava, através das janelas
abertas fortemente gradeadas, que davam para a praça.
Ouvidas muitas "testemunhas" no processo, maior era a convicção
da culpabilidade do preso, que, perturbado e abstruso, nem se
sabia defender, por maiores, insistentes ou persuasivos que
fossem os interrogatórios das diversas autoridades, pois se
limitava a tartamudear "Deus sabe muito bem que não fui eu",
acrescentando, quando lhe perguntavam então quem teria sido:
"Deus sabe muito bem quem foi".
E a Benfeita mais se convencia, dia a dia, que fora o Nicolau
o matador, pois não era a voz do povo a voz de Deus?
Entrava a Quaresma...
Um dia, com geral espanto público, e inesperadamente,
o Augusto Nicolau apareceu na Benfeita, restituído à liberdade,
sem quaisquer explicações, regressando, livre e feliz, a sua
casa e ao convívio da sua família. E quando lhe perguntavam
alguma coisa sobre o que se passara, ele apenas sabia repetir
o que sempre dissera em Arganil: "Não fora ele que matara o
Cristiano... Deus bem sabia quem fora".
Alguns dias depois as autoridades vieram prender, no Pisão-de-Águas-das-Maias,
o João dos Santos, proprietário, chamado João do Pisão, compadre
do assassinado e que assistira ao funeral com exuberantes manifestações
de pesar, quase de desespero, pela morte do seu querido amigo
e compadre!
Correu então que o João do Pisão tinha sido denunciado pelo
padre Alfredo, que o ouvira em "confissão", mas novamente "a
voz do povo" não era a "voz de Deus" porque o sacerdote se limitara
a ir a Arganil garantir a inocência do Augusto Nicolau e não
pronunciara, nunca, o nome do João do Pisão! Este confessou,
foi condenado, fugiu, andou anos a monte, cumpriu vários anos
na Penitenciária de Lisboa, e veio acabar os seus dias no Pisão-de-Água-das-Maias.
Talvez um dia digamos como fugiu da Cadeia de Arganil, na madrugada
da sua condenação, como viveu clandestinamente até em Castelo
de Vide e em Aldegalega do Ribatejo (agora, Montijo), onde viveu
com a mulher e esta afinal o denunciou às justiças, com medo
do marido a matar.
CA 7590_3 - 10/03/1977

P.S. - Apenas por mera curiosidade concluímos
esta história revelando que o João do Pisão
era visitado pelo seu filho na Cadeia de Arganil, onde se encontrava
a aguardar julgamento. Este, tendo-se apercebido do local onde
era guardada a chave da cela onde o seu pai se encontrava detido,
conseguiu fazer um molde, pressionando-a contra um pedaço
de sabão, tendo depois mandado fazer uma cópia.
Esta revelação está muito pobre de pormenores
que a credibilizem; mas, nela se garante que, graças
a essa cópia, o João do Pisão se evadiu,
tendo andado a monte durante anos, com o seu filho, que tinha
de pedir esmola para prover a sua sobrevivência.
Quanto ao infeliz Augusto da Costa Nicolau, natural do Monte
Frio, casado com Maria da Costa, e residente nas Luadas, faleceu
em 05/04/1902, também com 42 anos de idade, ignorando-se
a causa da sua morte.
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