HISTÓRIAS DA NOSSA TERRA |
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- Ó Vivaldo, Vivaldo! Tu não ouves, demónio? Aonde é que te meteste, meu ladrãozinho de presunto? "A ti'Ana descobriu!", concluí. No dia anterior tinha feito uma pequena "visita" à salgadeira tendo cortado uma fatia grossa de um naco de presunto que lá estava, mesmo ao de cima, vermelhinho e apetitoso. Com dois bocados de pão e uma lasca de queijo corno fiz um lanchinho para levar para a ribeira para comer com o meu primo Carlos, quando fôssemos apanhar abrunhos. "Ela deve ter descoberto porque eu usei uma navalhinha pequena e o corte ficou incerto e atabalhoado devido à pressa que eu tinha em sair da cozinha para não ser apanhado no acto. E, ainda por cima, acho que não voltei a cobri-lo com sal. Na próxima vez, levo o naco todo!" - pensei. "Com a arca cheia de sal até acima, ninguém dará pela falta!". A minha tia Ana, era a única filha e a mais velha dos sete filhos que os meus avós paternos tiveram. Desde cedo tomou conta de todos os seus seis irmãos até saírem de casa para procurar melhor vida. Ela foi a única que ficou junto dos pais. Agora, gostava de estender o seu espírito protector aos sobrinhos, quando lá iam nas férias, já que nunca teve tempo para casar e ter filhos. Se eu não desaparecesse da vista dela tão depressa, ela não pararia de me ralhar. Assim, antes que ela me descobrisse, subi cautelosamente as escadas para o sótão, para não fazer barulho, e lá me deixei ficar deitado no chão, por baixo de uma cama de ferro que dava poiso a uma série de alguidares cobertos com toalhas de linho, ao lado de centenas de batatas que se encontravam espalhadas pelo chão, sobre caruma. Ela continuava a chamar por mim e, na esperança de que eu a estivesse a ouvir, continuava a enviar-me as suas mensagens ameaçadoras: - Quando o teu avô chegar vou-lhe mostrar o que tu fizeste ao presunto, meu lisboeta desajeitado! O meu avô não gostava de ter presunto encertado na salgadeira. "O que se tira de lá, já não pode voltar a entrar porque a gente esquece-se e fica rançoso!" - dizia. - Tu não ouves? Ó mosca varejeira da capital! Gostas de andar a meter as tuas asinhas em todo lado, não é? O teu avô, quando vier, dá-te o arroz! - continuava, ameaçadora. - Deixa-o lá, Ana, dizia a avó Leopoldina. - Amanhã, para castigo, leva-o a roçar mato contigo! Eu não respondia, ficava na moita, caladinho, para ela pensar que eu estava na rua, e encolhia os ombros debaixo da cama. "Queria lá saber!". Gostava de estar ali, de sentir o contacto com o chão de madeira; do cheiro das batatas e da caruma; das cebolas e dos alhos atados em réstias compridas, penduradas nas traves e nos barrotes do telhado; das abóboras pequeninas e das cabaças; e dos ramos de loureiro e de oliveira. Havia ali muita tralha pendurada e amontoada, como: cântaros, bacias, jarros e penicos; algumas arcas pequenas, bancos e cadeiras; candeeiros a petróleo, foices e roçadoiras. Gostava de ver a claridade que penetrava através das telhas, de ouvir o canto dos pássaros no telhado e de sentir toda aquela azáfama do campo em que as mulheres cantavam e falavam umas com as outras, a dezenas de metros de distância. Enfim, em Lisboa não havia nada daquilo! Naquela tarde, lembro-me que a última coisa que ouvi foi o toque das quatro da tarde no sino da igreja; depois, seriam umas nove da noite quando os gritos da minha irmã me acordaram: "Está aqui, está aqui! O mano está aqui!" Do sítio onde estava vi metade do corpo dela a emergir do chão, enquanto subia as escadas, trazendo na mão um candeeiro a petróleo que iluminava a sua entrada. No sótão ainda não havia luz eléctrica! - Chiu! - sussurrei, para que ela parasse de gritar. - O avô já chegou? - perguntei em voz surda. - Ainda não! Anda toda a gente à tua procura, mano. Tiveste aí toda a tarde? - Acho que sim - respondi. - A ti'Ana queria bater-me e eu escondi-me aqui e adormeci. Entretanto, a ti'Ana, que tinha ouvido os gritos de aviso da minha irmã, seguiu-a até ao sótão e já estava atrás dela: - Ah, meu malandro, toda a gente em cuidados contigo e tu aí... - disse, suspirando, parecendo aliviada. - Até já pensávamos que tinhas ido brincar para a Poça da Várzea. Vem cá para baixo que eu tenho uma coisinha guardada para ti. Mas, antes de nada, vai lavar as mãos. Mexeste nas batatas? Respondi negativamente pois sabia que aquele pó branco que as cobria não era lá muito bom para a saúde. Pensei que me queria dar o jantar ou qualquer coisa para comer. Estava com fome e com frio. Descemos e fui lavar as mãos na bacia da cozinha, como sempre era obrigado a fazer, antes de me sentar à mesa. - Agora, agarra no teu cântaro e vai ao chafariz do fundo, e só páras de trazer água quando o pote da cozinha estiver cheio. E isto é pelo presunto que tiraste da arca sem pedir! Pelo teu desaparecimento vou já preparar uma foice para ti. Amanhã vamos às pinhas, os dois! - disse, mordaz, e sem hesitações, não deixando margem para dúvidas de que tencionava fazê-lo. Não foi fácil o castigo! Ao fim e ao cabo este trabalho já era habitual, à noite, na Benfeita, só que era repartido por mais gente. Depois de jantar o pote da cozinha e os jarros das bacias tinham de ficar cheios de água, para o dia seguinte. Ao todo foram seis viagens que eu fiz, e uma quantidade enorme de degraus para subir e descer, dentro e fora de casa. Ao jantar tive omelete de presunto com batatas fritas em azeite, para variar. A ti'Ana sentou-se à mesa para me fazer companhia enquanto esperava a chegada do meu avô e a minha avó desceu à sala do 1º andar para conversar com a minha irmã que gostava de aprender rendas e outros trabalhos manuais. - Também cortei uma lasca de queijo corno que estava na prateleira da cozinha e duas fatias de broa. Foi para o meu lanche na ribeira! - acabei confessando, enquanto comia. O queijo "corno" era como chamávamos ao queijo de cabra que ela fazia. Tinha um sabor único e um cheiro muito intenso. Durava muito tempo e ficava muito duro, duro como o corno de cabra! - Tá bem! - concordou ela. - Mas na próxima vez que te apetecer lanchar fora de casa, pede. Escusas de estar a encertar bocados novos da arca quando pode já haver presunto em uso na cozinha. É todo igual! Quando o meu avô chegou, finalmente, já eu estava na sala do 1º andar a preparar-me para ir para a cama. Acho que ele não tinha levado muito a sério o meu "desaparecimento" e, se entrou mudo, saiu calado para o seu quarto, no 2º andar, depois da minha tia lhe ter contado onde eu tinha passado a tarde toda. Mas, já lhe tinham dito que me tinham visto na fonte, a carregar água para casa, e ele já tinha ficado mais descansado. O avô Firmino era de poucas falas e tinha pouca paciência para os miúdos! Fiquei a ouvir os seus passos, e os degraus da escada a rangerem, à medida que subia para o andar de cima, onde, em voz baixa, conversou pachorrentamente com a minha avó, até eu me deixar adormecer. Vivaldo Quaresma |
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