HISTÓRIAS DA NOSSA TERRA |
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A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro: Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra. Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa e espreito por uma fresta da janela. Amanhecia. E do céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos. Abro a porta da rua. Um recoveiro com um macho albardado, seguro pela arreata, elucida-me: É para ir tirar uma criança
à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra... Eu é que fiquei com o ânimo
partido ao receber tal notícia, seca e ríspida, como
a cara do recoveiro. Meto uma bucha à pressa, engulo-a
sem vontade, preparo a mala dos ferros e saio porta fora, mal humorado,
rumo à minha primeira grande aventura de médico de aldeia. Quanto tempo gastamos para lá
chegar? pergunto ao meu companheiro de infortúnio. Nesse tempo eu era moço e ágil.
Nada me custava sacudir os rins sobre o dorso duma alimária,
num percurso de três léguas, ao frio e à chuva.
Temia, sim, o caso bicudo que teria de resolver... ou não!
Por momentos, assaltava-me o desejo de voltar para trás, de declinar o cargo, de procurar outra profissão... mas, uma voz interior segredava-me: «Avança, aceita a luta, cumpre a tua obrigação». O chuvisco continuava e, na sua teimosia, encharcava o cobertor que me abrigava e começava a penetrar no fato. As mãos entorpeciam-se-me com o frio e tinha de as meter nos bolsos, de quando em quando, largando as rédeas. Entretanto, o macho, velho conhecedor destes caminhos ásperos, ia cumprindo com zelo a sua tarefa, desviando-se cautelosamente dos precipícios e evitando os espinhaços de xisto mais agudos. O caminho, agora, era a meia encosta. Lá no fundo do vale, a ribeira, crescida, de águas barrentas, rugia entre os fraguedos. A Serra, no seu silêncio misterioso, envolvia-nos por todos os lados. À frente, o meu companheiro, sempre loquaz, ia encurtando a lonjura com uma graçola picaresca ou uma história de lobos, e eu, absorto no meu presságio de desgraça, cada vez me sentia mais temeroso da tragédia que me esperava. Mais um valeiro, mais outro, mais um
monte a galgar e, por fim, o grito jubiloso do recoveiro. Ergo os olhos e descortino, ao longe, numa prega da Serra, a aldeiazita parda, de casas iguais, muito aconchegadas umas às outras, como que a protegerem-se mutuamente das inclemências da Natureza. Dos telhados baixos e cobertos de lousa, emergiam espirais de fumo, primeiro sinal de vida que eu descobria neste cenário tétrico de montes e abismos. Mais meia-hora com os ossos aos baldões no dorso da cavalgadura e eis-nos chegados. Apeei-me mesmo à porta da parturiente, moído e encharcado. Entro e deparo-me com uma cena digna dos pincéis de Rembrandt. No meio da quadra única do alapado casebre, jazia no chão, coberta com uma manta, a Maria Farrapeira, como morta. À roda, um friso de mulheres, embiocadas em xailes pretos, em jeito de velar um defunto. A um canto, a lareira a arder. No extremo oposto, um catre, armado sobre dois bancos de pinho. Um postigo estreito, sem vidraça, iluminava a custo aquele ambente funério. Afasto o séquito e dobro-me sobre os joelhos para observar a paciente. Uns gemidos débeis e uma respiração superficial eram os únicos sinais visíveis duma vida prestes a extinguir-se. Poiso as mãos sobre o ventre. O útero, cansado de lutar, já não se contrai, deixa palpar os contornos do feto. Acima da bacia, um globo enorme denuncia uma cabeça monstruosa. Ausculto o feto e, como era de esperar, nem sinais de vida. Tinha feito o diagnóstico: Um hidrocéfalo morto e uma mãe moribunda. Era preciso fazer alguma coisa. Preparo os ferros e ponho-os a ferver. Uma velha do grupo bate-me no ombro,
chama-me de parte, e segreda-me ao ouvido: Não me convence. Vêm-me
à lembrança os versos de Fernando Pessoa: «Tudo
vale a pena se a alma não é pequena». Mando atravessar a parturiente na cama
e recruto para ajudantes três mulheres que me parecem mais limpas. Tudo ensaiado e a postos, dei início
à intervenção. Com a mão esquerda em coifa,
protegendo a ponta do perfurador, levo este à cabeça
do feto. Com a mão direita empunhando o cabo, carrego e abro
a brecha. Repentinamente, uma onda de líquido irrompe do corpo
da Farrapeira, jorra para o sobrado e inunda a casa. Nisto, a ajudante
que estava sobre a cama, salta para o sobrado, aperta as mãos
na cabeça e sai porta fora a gritar: As outras imitam-lhe o gesto e seguem-lhe
os passos. Olho para trás e verifico que fiquei só.
Só! Eu e Deus... e a parturiente. Esta, meio aliviada, faz
uma inspiração funda e exclama: Já confiante na vitória,
prossigo. Fixo uma pinça no coiro cabeludo do feto e trago
para fora o monstro, de corpo franzino e cabeça descomunal,
agora achatada como um odre vazio. Segue-se uma dequitadura fácil
e pronto. Estava ganha a batalha! A Farrapeira, aliviada e feliz,
soergue a cabeça em direcção à porta da
rua e grita: A Maria não acredita que a irmã
esteja viva... espreita... e entra, pé ante pé. Quer
ver para crer, como São Tomé! Ao grito admirativo de
Maria, as outras acorrem, cercam-me, aplaudem e louvam. Saio do casebre
quase em triunfo. Cá fora, o meu amigo almocreve, abraça-me
com lágrimas nos olhos e clama: Sim! Guerra tremenda em que eu acabava de assentar praça como soldado raso. Guerra contra a ignorância, a miséria e a morte. Guerra em que eu iria encontrar, pela vida fora, triunfos sem glória e derrotas sem refrigério.
in:
SERRA! Caminhos dum médico Veja
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