HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Dr. Vasco de CamposTítulo: A primeira chamada para a Serra
Autor: Dr. Vasco de Campos
Data: 1933

A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro:

— Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra.

Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa e espreito por uma fresta da janela. Amanhecia. E do céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos. Abro a porta da rua. Um recoveiro com um macho albardado, seguro pela arreata, elucida-me:

— É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...
— Há quanto tempo está em trabalho de parto? — inquiri.
— Trabalho... trabalho... há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram as dores.
— Quer você dizer que está há quinze dias com as dores de parir?
— Pois claro! Aquilo berra p'ra lá que é de partir o coração dum seixo!

Eu é que fiquei com o ânimo partido ao receber tal notícia, seca e ríspida, como a cara do recoveiro.
«Pode lá ser! Quinze dias em trabalho de parto!»

Meto uma bucha à pressa, engulo-a sem vontade, preparo a mala dos ferros e saio porta fora, mal humorado, rumo à minha primeira grande aventura de médico de aldeia.
O arreeiro, lesto, encostou a ilharga da besta ao primeiro montadoiro que apareceu, e eu, escarranchei-me sobre o albardão, deitei uma manta pelas costas para me abrigar da chuva, e ala!

— Quanto tempo gastamos para lá chegar? — pergunto ao meu companheiro de infortúnio.
— Três horas bem puxadas — retorquiu o almocreve — Mas não se acobarde que o animal é rijo e eu vou para o que der e vier.

Nesse tempo eu era moço e ágil. Nada me custava sacudir os rins sobre o dorso duma alimária, num percurso de três léguas, ao frio e à chuva. Temia, sim, o caso bicudo que teria de resolver... ou não!
«Quinze dias de trabalho de parto!», repetia intimamente.
E pelo meu espírito de médico novato, repleto de teoria mas vazio de prática, iam perpassando como num ecran de cinema, todos os casos possíveis e imaginários que os tratados de obstetrícia haviam revelado.
«Que será de mim, neste ermo serrano, sem recursos de espécie alguma, sem ajuda de colegas que possam valer-me?!»

Por momentos, assaltava-me o desejo de voltar para trás, de declinar o cargo, de procurar outra profissão... mas, uma voz interior segredava-me: «Avança, aceita a luta, cumpre a tua obrigação».

O chuvisco continuava e, na sua teimosia, encharcava o cobertor que me abrigava e começava a penetrar no fato. As mãos entorpeciam-se-me com o frio e tinha de as meter nos bolsos, de quando em quando, largando as rédeas. Entretanto, o macho, velho conhecedor destes caminhos ásperos, ia cumprindo com zelo a sua tarefa, desviando-se cautelosamente dos precipícios e evitando os espinhaços de xisto mais agudos.

O caminho, agora, era a meia encosta. Lá no fundo do vale, a ribeira, crescida, de águas barrentas, rugia entre os fraguedos. A Serra, no seu silêncio misterioso, envolvia-nos por todos os lados. À frente, o meu companheiro, sempre loquaz, ia encurtando a lonjura com uma graçola picaresca ou uma história de lobos, e eu, absorto no meu presságio de desgraça, cada vez me sentia mais temeroso da tragédia que me esperava.

Mais um valeiro, mais outro, mais um monte a galgar e, por fim, o grito jubiloso do recoveiro.
— Senhor doutor, é já além!

Ergo os olhos e descortino, ao longe, numa prega da Serra, a aldeiazita parda, de casas iguais, muito aconchegadas umas às outras, como que a protegerem-se mutuamente das inclemências da Natureza. Dos telhados baixos e cobertos de lousa, emergiam espirais de fumo, primeiro sinal de vida que eu descobria neste cenário tétrico de montes e abismos. Mais meia-hora com os ossos aos baldões no dorso da cavalgadura e eis-nos chegados.

Apeei-me mesmo à porta da parturiente, moído e encharcado. Entro e deparo-me com uma cena digna dos pincéis de Rembrandt. No meio da quadra única do alapado casebre, jazia no chão, coberta com uma manta, a Maria Farrapeira, como morta. À roda, um friso de mulheres, embiocadas em xailes pretos, em jeito de velar um defunto. A um canto, a lareira a arder. No extremo oposto, um catre, armado sobre dois bancos de pinho. Um postigo estreito, sem vidraça, iluminava a custo aquele ambente funério.

Afasto o séquito e dobro-me sobre os joelhos para observar a paciente. Uns gemidos débeis e uma respiração superficial eram os únicos sinais visíveis duma vida prestes a extinguir-se. Poiso as mãos sobre o ventre. O útero, cansado de lutar, já não se contrai, deixa palpar os contornos do feto. Acima da bacia, um globo enorme denuncia uma cabeça monstruosa. Ausculto o feto e, como era de esperar, nem sinais de vida. Tinha feito o diagnóstico: Um hidrocéfalo morto e uma mãe moribunda. Era preciso fazer alguma coisa. Preparo os ferros e ponho-os a ferver.

Uma velha do grupo bate-me no ombro, chama-me de parte, e segreda-me ao ouvido:
— Não vale a pena. Ela está a cumprir alguma hora que lhe falta...

Não me convence. Vêm-me à lembrança os versos de Fernando Pessoa: «Tudo vale a pena se a alma não é pequena».
Eu tinha bem presente a técnica da craniotomia e levava comigo o material necessário.

Mando atravessar a parturiente na cama e recruto para ajudantes três mulheres que me parecem mais limpas.
— Você carrega para baixo, com as duas mãos, nesta saliência do ventre; você segura esta perna; você esta. Entendido?

Tudo ensaiado e a postos, dei início à intervenção. Com a mão esquerda em coifa, protegendo a ponta do perfurador, levo este à cabeça do feto. Com a mão direita empunhando o cabo, carrego e abro a brecha. Repentinamente, uma onda de líquido irrompe do corpo da Farrapeira, jorra para o sobrado e inunda a casa. Nisto, a ajudante que estava sobre a cama, salta para o sobrado, aperta as mãos na cabeça e sai porta fora a gritar:
— Matou-a! Matou-a!

As outras imitam-lhe o gesto e seguem-lhe os passos. Olho para trás e verifico que fiquei só. Só! Eu e Deus... e a parturiente. Esta, meio aliviada, faz uma inspiração funda e exclama:
— Santas mãos!

Já confiante na vitória, prossigo. Fixo uma pinça no coiro cabeludo do feto e trago para fora o monstro, de corpo franzino e cabeça descomunal, agora achatada como um odre vazio. Segue-se uma dequitadura fácil e pronto. Estava ganha a batalha! A Farrapeira, aliviada e feliz, soergue a cabeça em direcção à porta da rua e grita:
— Maria, anda cá! — e repete: — Santas mãos! Santas mãos!

A Maria não acredita que a irmã esteja viva... espreita... e entra, pé ante pé. Quer ver para crer, como São Tomé! Ao grito admirativo de Maria, as outras acorrem, cercam-me, aplaudem e louvam. Saio do casebre quase em triunfo. Cá fora, o meu amigo almocreve, abraça-me com lágrimas nos olhos e clama:
— Quem vive na Serra, vive na guerra!

Sim! Guerra tremenda em que eu acabava de assentar praça como soldado raso. Guerra contra a ignorância, a miséria e a morte. Guerra em que eu iria encontrar, pela vida fora, triunfos sem glória e derrotas sem refrigério.


VASCO DE CAMPOS

in: SERRA! Caminhos dum médico
Edição "A Comarca de Arganil", 1990




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