HISTÓRIAS  DO  "MANETA"

As "bruxas" enfeitiçadas

Título: O "Maneta"
Autor: Mário Mathias
Data: Julho-Agosto/1954

Mário Mathias

Manuel Martins dos Reis, que a morte levou há quatro anos, era um homem alegre, folgazão, sério, inteligente, amigo do seu amigo, e tido como destemido e valentão.

Em pequeno, na fábrica de palitos de enxofre do "Tanque" que pertencia a seu pai, numa brincadeira de crianças que o marcou para sempre, afiada machadinha lhe decepou dois dedos, e para toda a vida lhe acrescentou ao nome de baptismo a alcunha de "Maneta".

Baixo, entroncado e forte, de farto bigode de pontas caídas, olhar vivo e gestos decididos, o "Maneta", que durante largos anos bebeu com prazer e abundância, até ao excesso, o belo sumo de uva, tinha a palavra fácil e a imaginação fecunda.

Fora curtas estadias no Porto e em Lisboa, onde tinha família, viveu quase sempre na Benfeita, numas casas amplas e bem situadas, a meio da encosta do "Oiteiro", com pátio e forno de cozer pão, que deitavam para a curva da rua, no sítio onde a longa levada das Almotaçerias atravessa para os Loureiros, a fim de mitigar, com a linfa revigoradora da sua água cantante, a sede estival dos milheirais.

Contavam-se dele aventuras espantosas, histórias aterradoras de bruxas, lobisomens, ou ladrões, que punham as velhas a benzerem-se, aterradas, e a miudagem boquiaberta e de olhos arregalados, medrosa e admirada.

Uma vez, o "Maneta", vindo sozinho pela Serra abaixo, cerca da meia-noite, a caminho de casa, ouviu, na altura das Extremas Carreiras, grandes e repetidas risadas. Outro qualquer teria tremido dos pés à cabeça, onde os cabelos se lhe teriam ouriçado de pavor! O "Maneta" parou, atento, a certificar-se de onde vinha o som das gargalhadas, e logo se encaminhou, resolutamente, através do pinhal, para o sítio assinalado.

Numa pequena clareira, um bando de bruxas dançava e ria! Eram dez ou doze, desgrenhadas, horrendas, horripilantes!

- É cabrada brava! - gritou-lhes o "Maneta". Eu já vos digo!

E rápido, decidido - contava ele depois - traçando no ar, com a mão mutilada, um signo-saimão, e proferindo umas tantas palavras mágicas, que só ele conhecia, logo ali prendeu as bruxas e as impossibilitou de fugir!

E assim as teve prisioneiras o tempo que quis. Bem berravam elas, bem estrebuchavam gritando ameaças tremendas, proferindo pragas e esconjuros ou invocando contra o seu carcereiro os poderes maléficos do demónio, seu dono e protector!

Tudo era inútil, porque o "Maneta", que de nada nem de ninguém tinha medo, sentara-se num cômorozito, e divertia-se com o espectáculo, disposto a deixar nascer o Sol.

Por fim, as bruxas pactuaram, humilhando-se, envilecidas, chorando, súplices da quebra do feitiço que as constrangia, mas o "Maneta" só as desprendeu, pondo cobro ao seu encantamento, depois delas terem prometido, solenemente, em uníssono, não voltarem a atormentar nenhuma criança da Benfeita, nem perseguirem qualquer pessoa da freguesia!

Mário Mathias
A Comarca de Arganil - Julho/1954


Um "diabo" de varapau

Quem, vindo pela estrada a que hoje teremos de chamar "velha", que ligava a Portelinha à Benfeita, tivesse atravessado a Dreia e transposto o ribeiro "de cima", e deixasse à esquerda a "casa dos colhereiros" e, logo em seguida, na curva, as "alminhas" que convidavam o caminheiro a rezar pelos que penavam no Purgatório, entrava na pitoresca e tenebrosa "Barroca da Vinha". Pitoresca porque a estrada marginava formoso soito de gigantescos castanheiros,cujas copas,de um verde claro e alegre, formavam fechado docel, que o Sol a custo rompia; tenebrosa porque o "Diabo", segundo a tradição, escolhia aquele fresco e umbroso local para aparecer àqueles a quem queria tentar, ou meter medo. Raras seriam as pessoas que, de dia, atravessavam a "Barroca da Vinha" sem levarem o "Credo" na boca e a mão bem nervosamente apertada numa figa. E de noite... De noite, quem se atreveria a atravessar, sozinho, aqueles cinquenta ou sessenta metros de estrada?

Uma tarde, o Manuel "Maneta", de regressso não sabemos de onde, demorara-se a conversar na Dreia, numa roda de amigos. Cavaqueava-se e bebia-se; "rodada" para por um, "rodada" oferecida por outro, e depois por um terceiro e um quarto, que não queria ficar de somenos. O Sol já havia desaparecido há muito e a noite começava de adensar-se.

- Manuel, são horas - disse alguém - olha que não há luar e a noite vai ser de breu. Daqui à Benfeita ainda é um bocado, e os caminhos estão maus.
- Ainda é cedo - respondeu o interpelado - e o escuro não me mete medo!
- Mas olha que pode aparecer-te o "Diabo" na "Barroca da Vinha" - insistiu o amigo, para pôr fim às "rodadas".
- Pois até gostava que me aparecesse. Ao menos ia de companhia! - retorquiu o Manuel, com uma bela e sonora gargalhada.

A cavaqueira continuou ainda, mas a evocação do "Diabo" não deixou de impressionar os circunstantes, que, primeiro um, depois outro, foram indo para casa.

Às tantas, o "Maneta" despediu-se e, com uma bengalita de vareta de aço forrada de papel, que estava, então, na moda, meteu-se resolutamente ao caminho, assobiando. Desceu até à ribeira, subiu tornejando para a "casa dos colhereiros", benzeu-se em frente às "alminhas" e entrou no túnel formado pelas copas dos castanheiros. A escuridão era ali completa, e profundo o silêncio da noite, só interrompido pelo estalar dos gravetos debaixo dos pés do viandante. Súbito, o "Maneta" ouviu uma voz, uma voz roufenha, medonha, pavorosa! Estacou, olhos dilatados! Ouvidos atentos, ansiosos! E a voz repetiu, arrastadamente:

- Ó Manuel, espera aí que eu também vou!

E, detrás de um castanheiro, que depois se ficou a chamar "do medo" ou "do Diabo", surgiu um vulto branco, enorme, horrendo, a avançar para a estrada, brandindo um gigantesco e ameaçador varapau, prestes a deslombar o interpelado!

Nessa noite, o Manuel Martins chegou a casa muito mais cedo do que contava. Dir-se-ia que teve asas, ou que o seu anjo protector o ajudou a percorrer o resto do caminho! Porque o "Diabo" não foi, porque o "Diabo" ficou na "Barroca da Vinha", pois não teve "pernas" para acompanhar o "Maneta" na corrida.

A verdade é que só muito tempo depois o "Maneta" acreditou que aquele vulto medonho, horrendo, alveiro, de voz cavernosa, escalafriante e varapau ameaçador, não fora senão o José Gomes que, cortando caminho pelos matos, lhe saíra à frente naquele preparo, disposto a abater-lhe a prosápia com duas boas arrochadas.

Nota: O soito existente na "Barroca da Vinha" desapareceu totalmente com a "malina" que em toda a região deu nos castanheiros. O local está hoje completamente diferente do que era quando ocorreu a aventura, verdadeira, que fica descrita, não só pela falta dos castanheiros que ensombravam o caminho e o tornavam tétrico de noite, mas também porque sobre este veio a construir-se a "estrada de macadame".
As "alminhas", porém, ainda estão no mesmo local, reparadas dos insultos do tempo e dos malefícios dos homens, graças ao generoso interesse e patrocínio do Sr.António Nunes Leitão.
José Gomes, o "Diabo" que saiu ao caminho do "Maneta", era um homem alto, forte e valente, alfaiate de seu ofício que deixou boa fama de si.

Mário Mathias
A Comarca de Arganil - Agosto/1954