HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Júlia CasaisTítulo: Férias na Benfeita
Autor: Júlia Casais Pereira
Data: 23/11/2009

Até aos meus 8 anos de idade, todos os anos, no princípio de Julho, eu, a minha avó Maria da Assunção Relvas e a minha irmã Teodolinda Relvas Casais, costumávamos ir para a Benfeita, onde passávamos as férias de Verão até ao final de Setembro. Acontecia assim porque a minha avó, embora residindo no Porto, era natural da Benfeita e aí tinha parentes.

A ida da minha avó, da Benfeita para a cidade invicta, deveu-se ao facto dela ter trabalhado numa fábrica de fósforos que existia na Benfeita, pertença do senhor Lourenço dos Santos, pai de uma senhora que eu conheci, de nome Maria dos Anjos dos Santos mas que, não sei porquê, todos tratavam por Lala.

Por ocasião das festas de Nossa Senhora da Assunção, em 15 de Agosto, os meus pais (Carlos Casais e Helena Relvas) iam ter connosco à Benfeita para se associarem às festividades, regressando depois ao Porto. No início de Setembro voltavam de novo à Benfeita para, então, gozarem um mês de merecido descanso e, no final desse período, regressávamos todos ao Porto.

A partir dos meus 8 anos, deixei de ir com regularidade à Benfeita porque o meu pai adoeceu gravemente e veio a falecer em 1943. Depois deste triste acontecimento só regressei à Benfeita em 1970, já casada e ainda na companhia de minha mãe, e em 1995, após a morte de minha mãe, mas já encontrámos muito pouca gente conhecida.

Numa consulta que fiz aos “Subsídios” do Dr.Mário Mathias, soube terem existido três fábricas de fósforos de enxofre na Benfeita. Eram oficinas de pequeno porte e desconheço quais os proprietários das outras duas embora tenha encontrado uma referência à fábrica de fósforos do Tanque que teria pertencido a um tal Manuel.
Em 1895, por decisão do Governo, foi criada a Companhia Portuguesa de Fósforos. Eram duas unidades de grande porte, uma no Porto, na freguesia de Lordelo do Ouro, onde moramos e outra em Lisboa, no Beato. Mais tarde esta Companhia foi extinta e deu lugar à Sociedade Nacional de Fósforos, com laboração só em Lordelo do Ouro.
Penso que, por essa razão, os donos das fábricas na Benfeita cederam os seus direitos e, por consequência, houve empregados e empregadas que transitaram para a nova fábrica no Porto. A minha avó foi uma delas.

A casa onde ficávamos instalados pertencia ao senhor Artur Dias, primo da minha avó, cuja esposa se chamava Palmira do Rosário. Tinham quatro filhos: o António, a Dorinda, a Assunção e a Laura. Vivia também com eles a mãe do senhor Artur, Amélia da Expectação. Essa casa ainda hoje existe, por detrás da capela da Senhora da Assunção. Naquele tempo o senhor Artur explorava, nesse mesmo edifício, uma pequena loja de bebidas.

Apesar da minha idade tudo continua bem presente na minha memória. Que saudades, meu Deus… Não havia luz eléctrica. Era à luz de vela ou de uma lamparina de azeite que nos alumiávamos em casa. Na rua, à noite, as pessoas utilizavam archotes para se alumiarem. Prendiam uma pinha na ponta de um pau e chegavam-lhe fogo. Também havia quem utilizasse candeias. Lembro-me que eu era muito irrequieta, tipo “Maria-rapaz” e que, à socapa, escondida junto à casa da Lala, quando os moços e moças passavam, atirava-lhes as pinhas ao chão. Coisas de criança!

A Fonte das Moscas! Que saudades… Ia lá com uma cantarinha, três e quatro vezes por dia, buscar água para beber. O meu pai adorava aquela água e eu fazia isso com prazer. Era uma bilha pequena, fácil de transportar, que eu punha à cabeça com a ajuda de uma rodilha. Havia pessoas, sobretudo raparigas que utilizavam vasilhas maiores e, com a ajuda de outras, levavam água para mais tempo. Penso que haveria mesmo quem transportasse água para os mais abastados e recebesse por isso qualquer recompensa.

As pessoas da Benfeita eram - como ainda hoje são - muito hospitaleiras. Distinguiam-nos com todas as atenções e nós procurávamos retribuir o melhor possível; mas, não havia nada que pagasse tanta gentileza. Um dia, o meu pai levou para lá um jogo – o Jogo do Burro - de que os homens muito gostaram. Tratava-se de um tabuleiro rectangular, assente em 4 pernas, com um buraco no meio e com uns quadrados desenhados, contendo diversas pontuações. Os homens reuniam-se na loja do senhor Artur, ao fim do dia, e entretinham-se jogando. O jogo consistia em lançar uma malha de ferro para esse tabuleiro e, tanto quanto me recordo, cada jogador fazia três lançamentos de cada vez; os pontos iam-se acumulando e, se acertassem na casa do “Burro” perdiam toda a pontuação dessa série. Quem conseguisse introduzir a malha no buraco obtinha a pontuação máxima e o jogo recomeçava. Esse jogo esteve até há pouco tempo na posse do senhor Artur Nunes da Costa, conhecido por Sr.Artur do Correio, que tem uma mercearia junto à Ponte do Cabo.

Na Benfeita e nas outras aldeias do país não havia saneamento. Era hábito vazarem-se pela janela para a rua, os recipientes com a água das lavagens domésticas, como de louça, por exemplo. De um modo geral todos faziam isso pois o líquido era rapidamente absorvido pela terra, entre as pedras da calçada. Recordo-me que um dia, a minha mãe, por força do costume, despejou uma pequena bacia com água, com tanto azar que foi molhar, inadvertidamente, o senhor prior que na altura passava. Visto à distância de 70 anos este episódio poderá ter uma certa piada mas, na altura, foi uma aflição muito grande. A minha mãe desfez-se em desculpas e só sossegou quando o senhor padre António Quaresma a desculpou e tranquilizou dizendo que incidentes daqueles aconteciam algumas vezes na aldeia. Todavia, pela nossa parte, tal nunca mais se voltou a repetir.

É com emoção que recordo os dois anos em que, no dia 15 de Agosto, fui na procissão vestida de Nossa Senhora da Assunção. A minha mãe e a minha avó tinham muita devoção pela Santa e faziam questão de me vestirem a rigor. Penso ter sido no final dos anos 30 - há 70 anos!

Não sei, com exactidão, a data de nascimento da minha avó, mas calculo que tenha ocorrido por volta de 1889 pois faleceu em 1961, com 72 anos. Também não conheci completamente a família dela mais chegada. Além do primo Artur Dias e dos seus familiares mais próximos, lembro-me de um outro primo de nome Edmundo de Almeida e de sua irmã, Isilda. Ele era afilhado da minha avó, trabalhava em Lisboa, na Caixa Geral de Depósitos e, por altura das férias, encontrávamo-nos todos na Benfeita.

É interessante recordar que a viagem do Porto para a Benfeita demorava praticamente o dia inteiro. Eu e minha avó íamos de combóio até Coimbra, onde chegávamos por volta do meio-dia e só às 6 horas da tarde havia um autocarro que nos levava à Benfeita. Não havia transporte do Porto para a Benfeita e era de Coimbra que partiam os autocarros que serviam as várias localidades em redor. Com os meus pais não acontecia o mesmo, pois o meu pai tinha um carro de praça (táxi) e era nele que se deslocavam para a Benfeita e nele regressávamos todos, depois das férias.

Ultimamente não sabia da existência de familiares na Benfeita, todavia, em Outubro de 2007 fui lá com a família (marido, filho, nora e neta) e, quando perguntava a uma senhora onde podíamos almoçar descobri, casualmente, que se tratava da senhora D.Alda Nunes dos Santos, viúva do senhor Hermínio Rosário Dias, falecido em 2006 e que foi secretário da Junta de Freguesia. Este senhor era neto do primo Artur Dias, logo, a sua esposa, por afinidade, ainda vem a ser minha prima, embora em grau afastado.

A partir de 2007, inclusivé, temos ido à Benfeita todos os anos e ainda aí estivemos em Agosto passado. Somos recebidos em casa da D.Alda e de sua mãe, D.Conceição, uma senhora simpática com uma memória prodigiosa, apesar dos seus 96 anos. Tratam-nos com a generosidade que continua a ser uma característica das gentes da Benfeita, a quem desejo a maior sorte. Por mim, se Deus me der saúde, irei a essa linda terra matar saudades, sempre que puder.

Júlia Casais Pereira
Lordelo do Ouro / Porto


NOTA: Através de seu marido, Fernando Pereira Martelo, tivemos conhecimento que Júlia Cremilda Relvas Casais Pereira, faleceu no dia 21 de Dezembro de 2010. Com ele partilhamos este momento de tristeza, em memória de sua devota esposa e amiga da Benfeita. Paz à sua alma!


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