HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Título: Brincadeira de carteiro
Autor: Sérgio Francisco
Data: 01/10/2008

Recolha de: "A Comarca de Arganil"

O meu velho amigo, Alberto Trinta de Carvalho, residente em Coja, deslocou-se de propósito a Pardieiros para me entregar uns versos alusivos à volta que lhe estava atribuída como carteiro, desde o ano de 1954, na freguesia de Benfeita, mais precisamente em Benfeita, Pardieiros, Monte Frio, Relva Velha, Enxudro e Sardal.
É uma brincadeira com as alcunhas por que a maioria dos naturais de Pardieiros eram conhecidos na sua terra e a sua publicação tem a oportunidade de homenagear todos os que são referidos e destes vivo só existe o Toino Bito. É também de referir a imaginação do autor, como se pode ler a seguir:

Brincadeiras do carteiro

Em tempos que já passaram, quase todos os homens dos Pardieiros tinham uma alcunha e era por ela que normalmente se contactavam.
Quando eu já estava ciente dessa normalidade e me encontrava em qualquer parte com pessoas comunicativas, naturais ou ligadas aos Pardieiros, que conheciam a situação, eu perguntava:
- Sabem o que nos Pardieiros se deu?
Perante a resposta negativa eu respondia:
- O que nos Pardieiros se deu, não viram vocês nem eu!

Foi o caso do Badaça
Que estava a urinar na Praça.
Gritou-lhe o Barriga Rija:
- Aqui na Praça não se mija!
Isto começou a rir,
Mas passaram a discutir,
Formou-se ali uma zanga.
Apareceu logo o Penanga,
O Paca e o Nipais
E apareceram outros mais ...
Era um barulho infernal
Quando chega o Zé do Val
Comentava o Zé da Paz:
- Olhem o que o vinho faz!
O Aristides só se ria
Porque ninguém se entendia.
Nisto chegou o Tarouco,
Depois o Zé do Barroco,
Veio à janela o Riri:
- «Mas o que se passa aqui?».
Era um desassossego
Com o Alberto Grego
A zabumbar no Labrego.
Zangaram-se no trabalho,
A culpa foi do Chambalho.
Apareceu o Perdigão,
Levou logo um empurrão.
Quem o levantou do chão
Até foi o Toino Bito.
Correu muito aflito
E foi chamar o Carranca,
Que pegou lá numa tranca
E garantia ao Espalha:
- «Ele vai levar uma malha...»
Mas o Adelino Trinta
Ainda tentou uma finta
Para lhe deitar a mão,
Mas levou um safanão...
O Zé Paródias zangado,
Por ter sido empurrado
Quando ele ia a fugir,

O Arrobas pôs-se a rir
E diz logo o Zé Albino:
- «Segue lá o teu destino
Mas ouve o que eu te digo,
O Missas que vá contigo!
Vão depressa sem demora,
Não o deixem ir embora!»
Mas valeu o Estorrado,
Vinha já muito cansado,
E mesmo assim o agarra.
Grita então o Samarra:
- «Ó Ti Mário não desista,
Que já lá vem o mê tio Fadista!».
Era tanta a barulheira,
Que se ouvia na Torjeira.
Diz de lá o Zé Soares:
«Se tu não te acalmares
Vais já saber como é ...
Vou daqui mais o Café
E vai também o Zé Fino».
Mas quem foi tocar o sino
Foi o Feliciano Tojeira.
Lá vão todos à carreira.
Desta vez não é na Praça,
É na loja do Ferreiro.
O que vai beber de graça
É o que lá chegar primeiro.
Sentadas ao soalheiro
As mulheres até se riam,
Umas para as outras diziam:
- «São ideias do carteiro,
Gosta muito de brincar!
Põe-se agora a inventar
O que não lembra a ninguém.
Os homens da nossa terra
Nunca andaram cá em guerra,
Sempre se portaram bem».

O que nos Pardieiros se deu,
Não viram vocês nem eu,
Porque nada aconteceu!

O carteiro é que inventou toda esta brincadeira mas sabia perfeitamente que essa normalíssima forma de contacto traduzia a convivência e amizade que continua a verificar-se entre a população de Pardieiros.

O carteiro Alberto Trinta de Carvalho
(Côja)


NOS ANOS CINQUENTA

Um carteiro na Beira-Serra
da estação de Côja colocado na Benfeita

Fevereiro de cinquenta e quatro
Ano do século passado
Quando um giro dos Correios
Na Benfeita foi criado.

Por necessidade ou destino
Eu fui ali colocado;
Para o fazer a pé
Em horário complicado.

Falar na deslocação
E da distância concreta
Fazia de graça todos os dias
Dezoito quilómetros de bicicleta.

Começava ao meio dia
O horário determinado
Mas, alguns dias, o correio
Chegava à Benfeita atrasado.

O desempenho do cargo
Mal suportava demoras
Fazendo as tardes de Inverno
Um giro de oito horas.

Separar a correspondência
Para cada povoação
A Benfeita era a primeira
A ter distribuição.

Por volta da uma e meia
Como era habitual
Lá ia o Alberto a pé
Para o seu giro rural,

De Inverno vento e chuva
E no Verão, pelo calor,
Só quem conhece o percurso
Saberá dar o valor.

Estradas não existiam
Os caminhos eram maus
A maior parte por veredas
A subir e descer degraus.

Pela Senhora das Necessidades
À Ribeira do Soito Moninho
Subir para os Pardieiros
Era o único caminho.

Feita a distribuição
Também sem qualquer desvio
Descer à ribeira da Mata
E subir para o Monte Frio.

E sempre que necessário
Cumprindo a obrigação
Eu ia à Fonte Raiz
Que também tinha distribuição.

Dali para a Relva Velha
Onde abrandava um bocado
Continuando para o Enxudro
Em passo acelerado.

Em Novembro e Dezembro
No Sardal, ao anoitecer,
Com a distância para a Benfeita
Ainda para percorrer.

Já de noite, na Benfeita,
A correspondência que trazia
Ficava retida no Posto
Para expedir no outro dia.

Depois do serviço pronto
A bicicleta me esperava
O meu transporte para Côja
Que era onde eu morava.

Apesar do sacrifício
Eu sentia-me contente
Nem o notaria tanto
Por lidar com boa gente.

Ver os jovens desse tempo
Hoje já com mais idade
Sempre que nos encontramos
Mantém-se a mesma amizade.

Momentos de alegria
Sacrifícios e emoções
Muitos anos já passaram
Ficaram as recordações.

 

Alberto Trinta de Carvalho
(Côja)