O
"Zé Acho", de seu nome José Martins Antunes,
foi uma figura muito estimada na Benfeita, ao longo de muitos
anos. De estatura franzina, duro de ouvido e pouco farto de
carnes, o Zé Acho, era coveiro de profissão e exercia a sua
actividade no cemitério da Corga. Fazia-se acompanhar, sempre,
pelo seu instrumento de trabalho, um enxadão de grandes dimensões
que, habitualmente, transportava ao ombro.
Era
uma pessoa de poucos recursos e vivia de esmolas pois os pagamentos
que recebia pelos serviços que prestava, eram esporádicos
e de pouca monta. Vivia numa casa modesta, já demolida, onde
hoje se situa a mercearia do "ti Artur", junto à
Ponte do Cabo.
Tossia com bastante frequência
e de uma forma característica. A sua tosse era persistente
e tinha uma tonalidade grave e cavernosa. Os mais velhos ainda
dizem, hoje: "Pareces o Zé Acho!", quando alguém
tosse muito e repetidas vezes.
Dele se conhecem alguns episódios
que, pela sua singeleza e simplicidade merecem que se lhe
reconheça alguma simpatia e compaixão. O seu sentido de honestidade
era comovente e enternecedor, quando recusava uma oferta de
azeite porque "ainda lá tinha qualquer coisinha, em casa"
e não queria que a pessoa que oferecia ficasse desprevenida.
Porém, quando se lhe acabava o azeite dirigia-se à tal pessoa
e perguntava-lhe se a oferta feita, em tempos, ainda se mantinha
de pé. Embora vivesse basicamente da mendicidade, era curioso
o facto dele não querer que as pessoas se privassem de algo
que ele ainda possuía, por pouco que fosse.
Conta-se que, um dia, certa
pessoa de nome Zé Albano terá caído p'rós lados da Teixogueira
e ficado estirado sobre o mato. Mais tarde foi encontrado
por alguém que, alarmado, correu à aldeia a chamar o médico.
Quando chegaram ao local, o Zé Albano ainda continuava no
chão, inanimado. Improvisaram, então, uma padiola com que
o transportaram para a aldeia.
O Zé Acho que, na altura, se encontrava no cemitério, ao ver
passar o cortejo, "achou" o pior e, as poucas palavras
trocadas à distância deram origem a um mal entendido. Benzeu-se,
como era seu costume, e começou de imediato a preparar o coval
para enterrar o Zé Albano, que pensava já ter falecido.
O boato correu ligeiro e o
Zé Dias, alfaiate de profissão, começou logo a talhar o fato
para o Zé Albano levar no seu enterro, que, como era hábito,
nem precisava de ter bolsos.
Quando tudo se esclareceu, o Zé Albano, serrador, que só viria
a falecer dez anos depois, em 1960, acabou ficando com o fato,
que lhe havia sido preparado para levar para debaixo de terra,
embora tivesse pedido ao Zé Dias que lhe costurasse os bolsos
e fizesse os necessários acertos. Tudo para que o pobre do
Zé Acho não ficasse desacreditado, devido à sua surdez.
Mas, quis o destino que a cova aberta pelo Zé Acho viesse
a ser utilizada para outro Zé Albano, um jovem de 15 anos,
de nome José Albano Martins, corria o mês de Setembro de 1950.
José Martins Antunes,
o Zé Acho da Benfeita, faleceu no dia 15 de Setembro
de 1957, com 93 anos de idade, em velhice extrema e extrema
pobreza, e em completa solidão, embora tenha vivido
com a sua irmã Maria Antunes Martins, falecida em Agosto de
1944 e com os sobrinhos Maria e Alfredo.
O Zé Acho morreu sem
ter deixado um inimigo e foi a sepultar na carreta da Liga
de Melhoramentos, acompanhado pela Irmandade de Nossa Senhora
da Assunção e por mais de 120 pessoas que lhe
prestaram, assim, uma comovida e derradeira homenagem.
Conta-se que, durante o seu
funeral, a juventude da Benfeita que vivera atemorizada com
a sua imagem de enxadão ao ombro, comparada à
imagem da própria Morte, festejou cruelmente, com dez
dúzias de foguetes e muito vinho, a sua morte, como
se isso os libertasse do fim da vida e lhes trouxesse a felicidade
da vida eterna.
VIVALDO QUARESMA
O «TI» ZÉ ACHO
Subiu do Areal à Praça, casmurro, rezando para si uma
lamúria que ninguém dava entendimento.
— Então que temos, homem!? — perguntava o Incas ao Zé
Acho, que viu «trabolando» naquela reza sem acerto.
Danado este Zé Acho, que punha o branco no preto com
a mesma certeza que certa vez pregara um soco na cara
do Telhas. Ah! Lá recto era, mais amigo da verdade não
havia naqueles arredores. Falava de tudo com acerto
e ligeireza; não que fosse má língua, pois só contava
o que já estava contado. Quando ripava do cigarrito,
dava uma chupada tão funda e tão longa que parecia que
o fumo entrava nas mais longínquas e misteriosas cavernas.
Olhava com aqueles olhitos por debaixo de umas sobrancelhas
pretas, desalinhadas, mais descompostas que os tojos
da Mata da Margaraça. Corriam-lhe face abaixo duas rugas
paralelas que pareciam as mesmas que o tempo fez nestes
montes, e o bigode, pendendo sobre a boca cambada, acabava-lhe
o ar de sisudez e nada tolo como alguns o têm. Nos dias
de festa, ou porque o palhete era demais ou porque os
Santos lhe mereciam, batia o pé até noite avançada e
cantava o fado, o que lhe valeu fama de bom cantador.
— Então homem, que é isso!? — voltou à carga o Incas.
— Oh rapaz, passei ali pelo Areal, é uma dor d'alma…
Aquela escola onde aprendi letra redonda e berrámos
todos à uma o b-a-bá, está para ali que é um lixeiro.
— Tens razão, ó Zé. Também já pensei nisso, mas disseram-me
que havia projecto ou lá como lhe chamam...O Sr. Presidente
sabe disso!... E se ainda não foi por diante é por mor
de coisas que não sei ao certo.
O Zé coçava a cabeça sem saber o que responder. Lá projecto
havia, mas qual quê!... De promessas está o Inferno
cheio, sempre ouvira dizer. Pensava isto e punha sentença
de Doutor Juíz em cátedra de Tribunal de primeira:
— Hão-de vir muitas chuvas, e muitas neves lhe hão-de
passar por cima, e ainda hás-de ver, se Nosso Senhor
que está sentado à direita de Deus Pai o permitir, aquela
lixeira tal qual está agora.
Perante tanta eloquência, o Incas calou-se sem argumentos
que pesassem. É que o Zé Acho era tido como homem de
letra redonda: lia os jornais como ninguém; sabia de
cor os romances de Camilo e sentença posta por ele nunca
caíra em terra vã.
— Adeus, ti Zé Acho, retirou-se o Incas embatocado perante
semelhante saber.
— Até ao mês que vem, se por Deus não se cruzarem as
nossas sombras (dizia de fugida o Zé Acho e continuou),
Deus o proteja que bem precisa. Os tempos vão maus,
pois já querem mandar uns farrapilhas que, lá por lerem
dois livrecos que eu não enxergo, pensam que põem e
dispõem, sem nós podermos dizer nem fum nem funeta.
Adeusinho. Para o mês que vem cá estaremos.
Publicado em “O Badalo”
Outubro de 1975
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O «TI» ZÉ ACHO
Chovera bem há dias.
O Inverno espera o seu tempo. As folhas das videiras,
outrora vermelhas de sangue que salpicavam toda a terra,
hoje jazem mortas, desfazendo-se no chão que começa
a gelar.
Sentado na soleira da porta, o «Ti» Zé Acho, de samarra
pelos ombros, chapéu virado para os olhos, vê a vida
correr devagar, sem atropelos nem agravos de maior.
Aldeia fora, os cochichos do costume:
— A Maria está pranha! O sr. Abade vai-se embora! O
Quinzinho assaltou um galinheiro! O Dr. Afonsinho vem
hoje!
A vida corre serena e calma, a natureza concilia-se
com as diabruras dos homens.
Nos serões até altas horas da noite, joga-se a sueca,
fala-se do que dizem os jornais, discute-se o tempo
e a missinha que foi curta e só a apontar que até a
Emília, a grande beata, veio desconsolada. Servem assim
os serões para tudo, menos para trabalhar, que para
isso também não foram feitos.
Nos castanheiros os ouriços abrem-se, empanturrados
de castanhas. Pelos soutos acima, de cócoras, a miudagem
apanha as castanhas, que ao domingo, mesmo à tardinha,
assam no largo da aldeia. Em redor da fogueira, daí
a pouco, entre risadinhas virgens e um copo de jeropiga,
estoura no lume — PUM! — uma castanha, posta marotamente
para o efeito. Depois os mocetões, de barba a espigar,
correm atrás das raparigas, mais por carícia do que
por outra coisa, farruscam com as mãos sujas as caras
rosadas das moças e, alegremente, elas imitam-lhe o
jeito numa chiadeira de passarinho.
Corre assim por estas serras a vida, morna, sem solavancos,
mas... para o «Ti» Zé Acho, esse diacho de ideias cheio,
esse, resmunga desconfiado ao ver tantas folias:
— Os malandrins passeiam à vontade! — diz sempre que
o interrogam sobre a vida que para ele não vai má, pois
pode passar uns tempos na loja do Maçarocas a ler o
jornal e a contar lendas e peripécias do tempo do rei
Vamba.
— Então Maçarocas, como vão esses ossos? — cumprimento
habitual do Zé Acho, que põe na saúde dos ossos a certeza
da verticalidade da espinha dorsal.
— Como vão os caroços? — responde o Maçarocas, a brincar,
que costuma fazer rimar tudo que lhe vem à cabeça.
— Quais caroços qual carapuça. Os ossos… os ossos, homem!
Mas deixa-te de brincadeiras.
— O jornal já veio? — pergunta o «Ti» Zé Acho. — Que
diz ele?
— Olha (segreda-lhe o Maçarocas) o que não diz com certeza
é que para podermos ver a nossa iluminação temos que
acender um fósforo.
A brincar e a sério, criticando o que é de criticar,
louvando o que é de louvar, tró-laró-laró, copito atrás
de copito, passa o nosso amigo a vida mais ancho que
S. Pedro que, além de tudo, é o chaveiro do céu.
— Ó Zé, não é só isso... E as ruas, a sujidade, e mais
coisas haveria a dizer, que não caberiam numa folha
de carta — diz-lhe o Maçarocas.
— Sabes? A iluminação é fácil de resolver... Põem-se
velas!
— Boa ideia. Põem-se velas, que cera há muito quem faça!
Essa estudantada e não só, como dizem os da televisão,
que não fazem nada de préstimo, sempre fazem a cera
que se há-de pôr na iluminação. Essa é de mestre, ó
Zé, põem-se velas.
Soaram como trovões desafinados as risadas dos dois,
assinando deste modo o acordo das sentenças postas.
Bebeu depois mais um copo. Na torre, batiam as horas
de um bom cristão recolher a casa. Puxou então a última
fumaça, tão funda e tão longa que deixou no ar uma núvem
cor de cinza, igualzinha às que aparecem encarapinhadas
no cimo do carvão.
Publicado em “O Badalo”
Novembro de 1975
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