HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Título: O Zé Acho
Autor: Vivaldo Quaresma
Data: 10/10/2006

O "Zé Acho", de seu nome José Martins Antunes, foi uma figura muito estimada na Benfeita, ao longo de muitos anos. De estatura franzina, duro de ouvido e pouco farto de carnes, o Zé Acho, era coveiro de profissão e exercia a sua actividade no cemitério da Corga. Fazia-se acompanhar, sempre, pelo seu instrumento de trabalho, um enxadão de grandes dimensões que, habitualmente, transportava ao ombro.

A casa do Zé AchoEra uma pessoa de poucos recursos e vivia de esmolas pois os pagamentos que recebia pelos serviços que prestava, eram esporádicos e de pouca monta. Vivia numa casa modesta, já demolida, onde hoje se situa a mercearia do "ti Artur", junto à Ponte do Cabo.

Tossia com bastante frequência e de uma forma característica. A sua tosse era persistente e tinha uma tonalidade grave e cavernosa. Os mais velhos ainda dizem, hoje: "Pareces o Zé Acho!", quando alguém tosse muito e repetidas vezes.

Dele se conhecem alguns episódios que, pela sua singeleza e simplicidade merecem que se lhe reconheça alguma simpatia e compaixão. O seu sentido de honestidade era comovente e enternecedor, quando recusava uma oferta de azeite porque "ainda lá tinha qualquer coisinha, em casa" e não queria que a pessoa que oferecia ficasse desprevenida. Porém, quando se lhe acabava o azeite dirigia-se à tal pessoa e perguntava-lhe se a oferta feita, em tempos, ainda se mantinha de pé. Embora vivesse basicamente da mendicidade, era curioso o facto dele não querer que as pessoas se privassem de algo que ele ainda possuía, por pouco que fosse.

Conta-se que, um dia, certa pessoa de nome Zé Albano terá caído p'rós lados da Teixogueira e ficado estirado sobre o mato. Mais tarde foi encontrado por alguém que, alarmado, correu à aldeia a chamar o médico.
Quando chegaram ao local, o Zé Albano ainda continuava no chão, inanimado. Improvisaram, então, uma padiola com que o transportaram para a aldeia.
O Zé Acho que, na altura, se encontrava no cemitério, ao ver passar o cortejo, "achou" o pior e, as poucas palavras trocadas à distância deram origem a um mal entendido. Benzeu-se, como era seu costume, e começou de imediato a preparar o coval para enterrar o Zé Albano, que pensava já ter falecido.

O boato correu ligeiro e o Zé Dias, alfaiate de profissão, começou logo a talhar o fato para o Zé Albano levar no seu enterro, que, como era hábito, nem precisava de ter bolsos.
Quando tudo se esclareceu, o Zé Albano, serrador, que só viria a falecer dez anos depois, em 1960, acabou ficando com o fato, que lhe havia sido preparado para levar para debaixo de terra, embora tivesse pedido ao Zé Dias que lhe costurasse os bolsos e fizesse os necessários acertos. Tudo para que o pobre do Zé Acho não ficasse desacreditado, devido à sua surdez.
Mas, quis o destino que a cova aberta pelo Zé Acho viesse a ser utilizada para outro Zé Albano, um jovem de 15 anos, de nome José Albano Martins, corria o mês de Setembro de 1950.

José Martins Antunes, o Zé Acho da Benfeita, faleceu no dia 15 de Setembro de 1957, com 93 anos de idade, em velhice extrema e extrema pobreza, e em completa solidão, embora tenha vivido com a sua irmã Maria Antunes Martins, falecida em Agosto de 1944 e com os sobrinhos Maria e Alfredo.

O Zé Acho morreu sem ter deixado um inimigo e foi a sepultar na carreta da Liga de Melhoramentos, acompanhado pela Irmandade de Nossa Senhora da Assunção e por mais de 120 pessoas que lhe prestaram, assim, uma comovida e derradeira homenagem.

Conta-se que, durante o seu funeral, a juventude da Benfeita que vivera atemorizada com a sua imagem de enxadão ao ombro, comparada à imagem da própria Morte, festejou cruelmente, com dez dúzias de foguetes e muito vinho, a sua morte, como se isso os libertasse do fim da vida e lhes trouxesse a felicidade da vida eterna.

VIVALDO QUARESMA

 

O «TI» ZÉ ACHO

Subiu do Areal à Praça, casmurro, rezando para si uma lamúria que ninguém dava entendimento.
— Então que temos, homem!? — perguntava o Incas ao Zé Acho, que viu «trabolando» naquela reza sem acerto.
Danado este Zé Acho, que punha o branco no preto com a mesma certeza que certa vez pregara um soco na cara do Telhas. Ah! Lá recto era, mais amigo da verdade não havia naqueles arredores. Falava de tudo com acerto e ligeireza; não que fosse má língua, pois só contava o que já estava contado. Quando ripava do cigarrito, dava uma chupada tão funda e tão longa que parecia que o fumo entrava nas mais longínquas e misteriosas cavernas. Olhava com aqueles olhitos por debaixo de umas sobrancelhas pretas, desalinhadas, mais descompostas que os tojos da Mata da Margaraça. Corriam-lhe face abaixo duas rugas paralelas que pareciam as mesmas que o tempo fez nestes montes, e o bigode, pendendo sobre a boca cambada, acabava-lhe o ar de sisudez e nada tolo como alguns o têm. Nos dias de festa, ou porque o palhete era demais ou porque os Santos lhe mereciam, batia o pé até noite avançada e cantava o fado, o que lhe valeu fama de bom cantador.
— Então homem, que é isso!? — voltou à carga o Incas.
— Oh rapaz, passei ali pelo Areal, é uma dor d'alma… Aquela escola onde aprendi letra redonda e berrámos todos à uma o b-a-bá, está para ali que é um lixeiro.
— Tens razão, ó Zé. Também já pensei nisso, mas disseram-me que havia projecto ou lá como lhe chamam...O Sr. Presidente sabe disso!... E se ainda não foi por diante é por mor de coisas que não sei ao certo.
O Zé coçava a cabeça sem saber o que responder. Lá projecto havia, mas qual quê!... De promessas está o Inferno cheio, sempre ouvira dizer. Pensava isto e punha sentença de Doutor Juíz em cátedra de Tribunal de primeira:
— Hão-de vir muitas chuvas, e muitas neves lhe hão-de passar por cima, e ainda hás-de ver, se Nosso Senhor que está sentado à direita de Deus Pai o permitir, aquela lixeira tal qual está agora.
Perante tanta eloquência, o Incas calou-se sem argumentos que pesassem. É que o Zé Acho era tido como homem de letra redonda: lia os jornais como ninguém; sabia de cor os romances de Camilo e sentença posta por ele nunca caíra em terra vã.
— Adeus, ti Zé Acho, retirou-se o Incas embatocado perante semelhante saber.
— Até ao mês que vem, se por Deus não se cruzarem as nossas sombras (dizia de fugida o Zé Acho e continuou), Deus o proteja que bem precisa. Os tempos vão maus, pois já querem mandar uns farrapilhas que, lá por lerem dois livrecos que eu não enxergo, pensam que põem e dispõem, sem nós podermos dizer nem fum nem funeta.

Adeusinho. Para o mês que vem cá estaremos.

Publicado em “O Badalo”
Outubro de 1975

O «TI» ZÉ ACHO

Chovera bem há dias.
O Inverno espera o seu tempo. As folhas das videiras, outrora vermelhas de sangue que salpicavam toda a terra, hoje jazem mortas, desfazendo-se no chão que começa a gelar.

Sentado na soleira da porta, o «Ti» Zé Acho, de samarra pelos ombros, chapéu virado para os olhos, vê a vida correr devagar, sem atropelos nem agravos de maior. Aldeia fora, os cochichos do costume:
— A Maria está pranha! O sr. Abade vai-se embora! O Quinzinho assaltou um galinheiro! O Dr. Afonsinho vem hoje!
A vida corre serena e calma, a natureza concilia-se com as diabruras dos homens.

Nos serões até altas horas da noite, joga-se a sueca, fala-se do que dizem os jornais, discute-se o tempo e a missinha que foi curta e só a apontar que até a Emília, a grande beata, veio desconsolada. Servem assim os serões para tudo, menos para trabalhar, que para isso também não foram feitos.
Nos castanheiros os ouriços abrem-se, empanturrados de castanhas. Pelos soutos acima, de cócoras, a miudagem apanha as castanhas, que ao domingo, mesmo à tardinha, assam no largo da aldeia. Em redor da fogueira, daí a pouco, entre risadinhas virgens e um copo de jeropiga, estoura no lume — PUM! — uma castanha, posta marotamente para o efeito. Depois os mocetões, de barba a espigar, correm atrás das raparigas, mais por carícia do que por outra coisa, farruscam com as mãos sujas as caras rosadas das moças e, alegremente, elas imitam-lhe o jeito numa chiadeira de passarinho.

Corre assim por estas serras a vida, morna, sem solavancos, mas... para o «Ti» Zé Acho, esse diacho de ideias cheio, esse, resmunga desconfiado ao ver tantas folias:
— Os malandrins passeiam à vontade! — diz sempre que o interrogam sobre a vida que para ele não vai má, pois pode passar uns tempos na loja do Maçarocas a ler o jornal e a contar lendas e peripécias do tempo do rei Vamba.
— Então Maçarocas, como vão esses ossos? — cumprimento habitual do Zé Acho, que põe na saúde dos ossos a certeza da verticalidade da espinha dorsal.
— Como vão os caroços? — responde o Maçarocas, a brincar, que costuma fazer rimar tudo que lhe vem à cabeça.
— Quais caroços qual carapuça. Os ossos… os ossos, homem! Mas deixa-te de brincadeiras.
— O jornal já veio? — pergunta o «Ti» Zé Acho. — Que diz ele?
— Olha (segreda-lhe o Maçarocas) o que não diz com certeza é que para podermos ver a nossa iluminação temos que acender um fósforo.

A brincar e a sério, criticando o que é de criticar, louvando o que é de louvar, tró-laró-laró, copito atrás de copito, passa o nosso amigo a vida mais ancho que S. Pedro que, além de tudo, é o chaveiro do céu.
— Ó Zé, não é só isso... E as ruas, a sujidade, e mais coisas haveria a dizer, que não caberiam numa folha de carta — diz-lhe o Maçarocas.
— Sabes? A iluminação é fácil de resolver... Põem-se velas!
— Boa ideia. Põem-se velas, que cera há muito quem faça! Essa estudantada e não só, como dizem os da televisão, que não fazem nada de préstimo, sempre fazem a cera que se há-de pôr na iluminação. Essa é de mestre, ó Zé, põem-se velas.

Soaram como trovões desafinados as risadas dos dois, assinando deste modo o acordo das sentenças postas.
Bebeu depois mais um copo. Na torre, batiam as horas de um bom cristão recolher a casa. Puxou então a última fumaça, tão funda e tão longa que deixou no ar uma núvem cor de cinza, igualzinha às que aparecem encarapinhadas no cimo do carvão.

Publicado em “O Badalo”
Novembro de 1975