A estrada nova
da Benfeita, foi, durante mais de um quarto de século,
um sonho. Um sonho bom, concebido em horas de credulidade optimista, que emocionou, que fez viver de
esperança duas gerações. Ansiedade de progresso, manifestação de vitalidade, desejo permanente de quantos haviam nascido na freguesia que as ribeiras da Mata e do Carcavão
enriquecem e amenizam, não passava, porém, de um sonho, que todos acalentavam, mas a que já poucos, por fim,
davam crédito.
Para que os sonhos saíssem verdadeiros - segundo diz o povo - era preciso sonhar três vezes seguidas com a mesma coisa, e não contar nada a ninguém... Ora do sonho da
estrada nova da Benfeita, sonhado de dia e de noite, ninguém fazia segredo, todos falavam dele em voz alta...
Dezenas de sonhadores entusiastas desapareceram na sepultura, levando consigo a mágoa de não verem
construída a sua estrada, mas outros os substituíram, mantendo sempre o
sagrado fogo da esperança. E assim se passaram anos e anos... 1890... 1900... 1910... 1920... 1930...
Entretanto, o povo continuava a percorrer, infatigavelmente, a estrada velha, aquele mesmo caminho que nossos avós haviam trilhado, e cuja arrojada
construção se devia ao grande Bispo-Conde, D.Francisco de Lemos.
Quantas vezes o percorri também...
Primeiro, as
ruas da povoação até à Igreja, a cuja porta todos
se benziam. Depois, a estrada, quase plana, que levava
à airosa e bem lançada Ponte Fundeira e ia, em
ligeira descida, pela Várzea, onde terras de
magnífico milho e de apetitosas hortas marginavam a
ribeira, que, caminhando brandamente a nosso lado, até
ao açude que recolhe a água para as Moendas, fazia
ouvir a eterna canção da corrente rumorejante. Passado
o ribeiro da Demieiro, quase seco no verão, e a
subida rasgada na rija rocha, chegávamos à Peneda
Lisa ou Oiteiro do Moinho.
Aqui, havia paragem certa. Ninguém que ali passasse
a caminho de outras povoações, deixava de suspender a
marcha, velho costume que a prática, transmitida de
pais a filhos, tornara obrigatório.
É que da volta do Oiteiro do Moinho deixava
de ver-se a Benfeita, desapareciam os horizontes da
nossa terra: as serras da Deguimbra e do Sardal
Cimeiro, a Picota, o Bujo, o Carcavão e todas as
encostas que das alturas descem até ao Areal, ponto
de reunião das águas que em qualquer delas a graça de
Deus haja feito brotar ou cair.
Quatro passos andados,
ocultar-se-iam aquelas
paisagens queridas: a Igreja e a sua torre sineira, de
onde a expressiva linguagem do bronze anunciara o
baptizado de cada um de nós; a povoação, recostada em
anfiteatro pelo Oiteiro acima, desde as frescas
águas da ribeira, até aos férteis olivedos; a
alvinitente e linda capela octogonal de Santa Rita
e seu adro embelezado com bucheiros, onde tantas
vezes brinquei quando menino; o Vale dos
Canteiros... a Lomba Agude... e entre estes
dois pontos, na encosta, abaixo da «Ter'rasteira», o
Casal do Sepinho, outrora cheio de vida e de
alegria, de bulício e de abastança, agora quase
desaparecido, desmoronadas algumas das suas casas;
outras abandonadas, sem que delas se veja já sair a
sugestiva e álacre fumarada azul das lareiras.
E do mesmo modo se esconderiam as terras do Soitelo,
dos Amiais e da Malhada... o colossal
e formoso castanheiro da «D. Rosa», que ensombrava a
pitoresca fonte das moscas; o Vale, povoado, em parte, de riquíssimos
soitos, estâncias amenas onde, de verão, tantos iam
passar as tardes calmosas.
Mais perto, quase defronte, a branquejar nos seus
muros caiados, ficava o cemitério da Corga. Todo
de campas rasas, verdadeiro campo da igualdade, onde
dormiam o sono eterno, sob a protecção da Cruz,
parentes e amigos. Por isso, para o cemitério,
pequenino e modesto, ia o último olhar, e ninguém que
demandasse longes terras se apartava daqueles
horizontes sem o coração confrangido, pensando:
- Voltarei ?
E quase sempre o sinal da Cruz, que
comovidamente se traçava da fronte ao coração, era
sentida prece deposta aos pés de Deus.
A estrada seguia talhada na vertente, tendo de
um
lado um precipício até à ribeira e do outro áspera
encosta tapetada de odorífero mato e coroada de
soberbos pinheirais.
Na volta sobranceira às casas do Pisão da
Água das Maias, múrmura fonte, brotando da rocha,
alimentava todo o ano rústica poça, no próprio
rochedo cavada. Nela brincavam, de verão, peixes
cabeçudos e deslizavam, sempre em movimento, os alfaiates.
Transposta a Cruz do Pau, sobranceira às
moendas, entrávamos num soito quase fechado, cuja
copa umbrosa o sol, mesmo no pino do dia, a custo
conseguia atravessar. Era a Barroca da Vinha, sítio
tétrico para os de poucos anos - e quem sabe se para
outros mais - por ali, ao que se dizia, aparecia o
diabo... Umas alminhas, porém, que logo se
encontravam, mudavam, em regra, o curso às ideias,
fazendo esquecer o medo.
Ladeava-se, a seguir, a Casa dos Colhereiros, a
cavaleiro da qual se escondia, entre arvoredo, a
povoação da Deflores, e começava então a
descida para o ribeiro de Cima, que atravessava
a estrada e que nem sempre se deixava transpor com
facilidade. Na quadra do estio, a corrente, de minguada,
não transbordava da estreita levada de rega que ali
abriam, mas, na época das chuvas, só utilizando os
muros das propriedades vizinhas, ou pulando de pedra
em pedra, sempre em risco de um banho, se conseguia
passar.
Custosa subida levava-nos então ao cimo da Dreia,
onde outras alminhas nos recordavam as
alterosas chamas do inferno, e em descida não menos difícil, por o pavimento de
rocha estar escorregadio e ter bastantes covas e
regueirões, atravessávamos a povoação, para
alcançarmos ao fundo o ribeiro de Baixo, irmão
gémeo do da Deflores nas dificuldades que igualmente
punha ao viandante.
Poucos passos andados, em nova subida, ficava a Casa
do Louro, com uma parreira à altura da janela sem
vidros, e, ao lado, numa quelhada, cinco ou seis cardos
gigantes, de mais de dois metros de altura, que todos
os anos ali floresciam.
Vencida a curta rampa e o caminho que à direita se
apartava para a Cerdeira, ficava o quelhão. Raro,
porém, se passava por ele. Toda a gente preferia o atalho,
estreito de dois palmos, mas de horizontes largos, que
à esquerda cortava por entre o mato e depois por um
olival. O quelhão, aberto num morro de terra,
era sombrio e triste; quem por ele seguisse, se quisesse
ver uma nesga do céu, teria que levantar os olhos bem
ao alto.
A descida continuava para a Baralha, tendo à esquerda temeroso precipício de
40 ou 50 metros, que terminava num magnífico chão
de milho. Lembro-me de por ali ter caído um carro de
bois, e de dois já a resvalarem pelo declive, terem sido
quase miraculosamente sustados, um pelo tronco
resistente duma cerejeira solitária e outro pelo
carreiro, o velho Correia, que saltando para a barreira
e encostado ao carro, fortemente, um ombro, mostrou bem
que a sua alma igualava ou excedia a própria
força.
No fundo, o caminho
encontrava novo curso de água: a ribeira da Cerdeira.
Mas este não se limitava, como os anteriores, a cortar
a estrada: confundia-se com ela durante 15 ou 20 metros.
Ribeira e estrada, eram uma e a mesma coisa, e
ai daquele que ali tivesse de passar quando as chuvas,
caindo em catadupas, a enchessem de lés a lés...
Há mais de 30 anos, no fim duma tarde tempestuosa,
corri, pequeno ainda, essa aventura. Uma pessoa de família,
muito querida, estava doente na Benfeita,
muito mal, e crente, talvez, de que chegaria em breve a
sua hora derradeira. Meu pai quis dar-lhe como lenitivo
para o seu sofrimento, a presença, a alegria e a
ternura dos meus pouquíssimos anos, e por isso, sem
avisar ninguém, partimos de Lisboa. Chovera todo o dia
e a ribeira da Cerdeira levava uma cheia medonha.
Forçoso era, porém, passar, e depressa, para cumprir o
nosso objectivo e evitar que a noite se fechasse. A
corrente e o volume das águas, de grandes que eram,
metiam pavor. Meu pai tomou-me então nos braços,
apertou-me bem contra o peito, e, nem sei como, conseguiu alcançar a estrada do outro lado. Já com as
luzes acesas, a alegria da nossa presença foi tal que
a doença em breve ficou debelada. Dessa tormentosa
travessia, para sempre guardou a minha memória infantil, penosa recordação.
Depois da ribeira, aonde se completavam cerca de dois
terços do trajecto, a estrada subia suavemente até à Finchosa.
Na vertente fronteira, avistava-se, ao fundo, o
lagar de azeite do Baeta, e, a meia encosta, o Casal
da Degalego, assinalado pelo tam-tam monótono duma caravela
espanta-gaios e pelo cantar alegre da criação.
A estrada seguia depois,
quase plana, por entre um olival. Próximo, brotava delgado fontanheiro que regava
dois ou três canoilos de milho, e muitas vezes serviu
também, por certo, para matar a sede ao viandante
afogueado.
Pouco depois, o caminho dividia-se. À direita, a
estrada que atingia a estrada nova próximo do
sítio da Carraca; à esquerda, um atalho que,
cortando entre matos e penedias, encurtava o trajecto e
ia ter à Portelinha, aonde nos esperava, de
braços abertos, a Cruz de outras alminhas, que
gente piedosa ali fizera erguer.
A Portelinha?!
Que cenas de ternura, de
tristeza e alegria se deram ali?!
A diligência que partia, entre lenços
brancos, agitados em comovidos adeus... A diligência
que chegava ao som das guisalheiras... Quantas
lágrimas, quantos beijos, quantos abraços, de dor ou
de satisfação, de desalento ou de entusiasmo, se
permutaram ali?
E assim se passaram anos e anos. 1890... 1900...
1910... 1920... 1930...
Em 1931 quebrou-se, porém, o encanto. O sonho
começou de tornar-se realidade... A 11 de Novembro - faz hoje
precisamente 10 anos - o povo da Benfeita deu,
por si próprio, início aos trabalhos da sua estrada-nova.
Na povoação, não ficou um só homem válido!
Todos se reuniram,
e, no meio de geral emoção,
iniciou-se a abertura da estrada. E como não houvesse
ferramentas que chegassem para todos, porque até
os artistas, pedreiros, alfaiates, carpinteiros e ferreiros, e os velhos e velhas
quase no fim da vida, e
os rapazes e raparigas mal despertos ainda, quiseram
manejar a pá ou a picareta, o carrinho de mão ou a
enxada, contribuindo assim com o esforço do seu braço
para a obra tantos anos ambicionada, houve que
organizar turnos, mas os mais entusiastas nunca
estiveram inactivos, pois quando mais não tinham para
fazer, tiravam as pedras, grandes e pequenas, que
encontraram no terreno que a estrada iria utilizar...
Trabalhou-se tanto nessa tarde,
que muitos se
convenceram de que a estrada estaria dentro de dois ou
três meses na Praça Simões Dias!
E afinal, que série de canseiras, que dificuldades
não houve de remover?! Que luta tremenda não foi
necessário sustentar?!
Dez anos decorridos, os que tomaram sobre os seus
ombros a pesada tarefa de dar à Benfeita a sua estrada
nova, podem rever-se na obra
realizada. Podem olhar para traz e sorrir de satisfação.
Venceram!
Nem as dificuldades da natureza, nem a
ignorância, o egoísmo ou a vaidade duns quantos, nem a incredulidade, ou o entusiasmo passageiro, e por isso derrotista, de
alguns, lhes entibiaram o ânimo.
Venceram, mas afinal quem venceu foi o povo, o bom,
disciplinado e trabalhador povo da Benfeita! Foi o povo,
que soube manter-se unido e não faltou nunca com o seu
apoio, material e moral, aos que, encarnando a sua alma,
tomaram abnegadamente a peito a realização desse
sonho, que duas ou três gerações debalde
acalentaram.
A estrada nova da Benfeita é hoje,
felizmente, uma realidade. E essa realidade é o
único triunfo e a melhor recompensa dos que sempre lhe
dedicaram o esforço ardoroso do seu braço, e o
entusiasmo indefectível do seu coração.
Porque a memória dos homens é fraca... Hoje, ainda
quase todos se lembram da estrada velha, mas em
breve, com o rodar dos anos, ninguém saberá dizer, ao certo, por onde ela passava...
NOTAS
1) Pedro Maria dos Santos Freire, que casou com D.
Maria Augusta, neta do Dr. Albino António Xavier e filha
de Maria Delfina e Lourenço dos Santos, que viveram e
faleceram na Benfeita, publicou em o «JORNAL DE ARGANIL»
de 16 de Abril de 1942, uma carta em que, respondendo a
um apelo de Leonardo Gonçalves Mathias para o empedramento da estrada-nova, se subscreve com 50$00, e
diz os tormentos que passou numa viagem que fez à
Benfeita, em 1910. Desse artigo consignamos os excertos
mais significativos:
«Fui pela primeira vez à Benfeita, há 32 anos, pouco mais ou menos.
E que diferença há entre essa época e a presente!
Pouco depois de proclamada a República, estando minha
mulher a passar as férias do Natal com sua família, quis fazer-lhes uma surpresa. E assim, sem
prevenir ninguém, meti-me no combóio, sem pensar que ia correr a mais aventurosa de
quantas viagens tenho feito.
Descendo em Santa Comba, tomei
a diligência do Sabino, e, depois de 6 ou 7 horas de solavancos, com paragens em S. João de
Areias, Tábua, Carvalhas da Maria Marques e Coja, fui despejado na Portelinha...
E quando eu julgava ter terminado ali a viagem, o cocheiro, indicando-me um
caminho terrível, cheio de covas, disse-me, «vá
andando agora por esse caminho adiante, que não tem que
errar, e daqui a duas horas, pouco mais ou menos,
estará na Benfeita...»
E dando as boas noites, fez estalar o chicote,
virando o carro e partindo para Coja.
Anoitecia, e do céu, onde corriam pesadas
nuvens,
caíam frequentes bátegas de água.
Meti-me ao caminho, corajosamente, mas como a chuva
não despegava e a noite se tornava escura,
confesso que cheguei a pensar em voltar para traz. Mas
como? Toda a região me era desconhecida, e eu não
sabia por onde andar, nem como tornar para Coja.
Metendo os pés nas poças de água, enlameando-me
todo, fui andando. De repente ouvi o ruído de vozes e
dum carro que chiava. Embora com dificuldade apressei o
passo e encontrei um carro de bois, guiado por um homem
alto e forte. Chegamos à fala, e tendo-lhe eu
perguntado se aquele era o caminho da Benfeita, respondeu-me afirmativamente, inquirindo:
-
O sr.vai para lá ? Para casa de quem?
Esclareci-o
sobre a minha identidade, e então o carreiro, que era o
Florindo Velho, da Mata da Margaraça, já falecido, quis
amavelmente que eu fosse em cima do carro, para me livrar
dos lamaçais e das covas... e até me cobriu
com umas sacas para eu me molhar menos.
Subi para o carro, mas os meus tormentos aumentaram então, porque as relheiras por onde as
rodas passavam,
tinham desníveis enormes e eu estava sempre em transe
de cair.
Mesmo agarrado aos fueiros, os solavancos quase me atiravam para fora do
carro, e eu olhando os precipícios que marginavam a estrada,
do lado da
ribeira, receava as consequências graves que poderiam
resultar dum trambolhão. Estafado, com
os rins arrasados, mais morto do que vivo, cheguei finalmente à igreja, e depois, a pé,
lá segui até casa de minha sogra, aonde a minha entrada, naquele estado e àquela hora da noite causou
profunda sensação.
Durante três ou quatro dias mal me pude mexer,
tamanha tinha sido a tormenta...
A última vez que fui à Benfeita foi em Outubro do
ano passado. Que diferença! Que viagem maravilhosa comparada com a primeira!
Descendo do comboio, em Coimbra, tomámos a camioneta da
carreira e, sem
solavancos, comodamente, apeamo-nos três horas depois próximo da igreja da Benfeita, junto da escola
feminina!
Quando vale uma viagem assim!
Quanto vale a estrada nova?!
2) No final do ano de 1941 a «estrada-nova» chegava
à povoação, junto à antiga escola feminina, ficando
apenas a separá-la da Praça Simões Dias a velha casa que fora da
família do Poeta e havia sido
trocada com a viúva de António Marques, Emília do
Nascimento - perita na arte de ornamentar andores para as
procissões - demolida apenas em 1958. A «estrada-velha» foi então completamente
abandonada até pelos que tinham de fazer o percurso a pé. Os que viajavam de automóvel, vencendo agora em
15 minutos a distância que antes levava duas horas e
duas horas e meia de andamento, mal tinham possibilidade
de observar a paisagem...
Mas, o percurso antigo tinha aspectos e pormenores encantadores, cujo desaparecimento deve ter
provocado, em parte pelo menos, o seguinte soneto:
Eu fiz outrora um grande desatino:
Troquei por longes terras indiferentes
O céu azul, o verde mar e as gentes
Das terras em que andei quando menino.
Quando voltei emudecera o sino,
Tinham secado as fontes e as sementes,
Andorinhas e flores todas ausentes...
Outros homens mudaram as estradas
Por onde caminhei na minha infância...
Onde estão os silvedos com amoras?
Os cachos de uvas negras das latadas?
A cerejeira em flor? Tudo é distância...
Coração peregrino, por quem choras?
Este soneto, que se intitula «REGRESSO» (Nova
parábola do filho pródigo) e tem a data de 28-7-1943, vem a fls.17 do livro de versos «DOZE SONETOS
E UMA CANÇÃO» do Dr. Marcello Mathias, 2ª edição,
composto e impresso no Rio de Janeiro pela Empresa «Dois Mundos Editora», em Novembro de 1944.
Mário Mathias
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