Morrinha1
brasileira
(O engajado2)

O sol ardente
sobre estas plagas3
Dardeja a prumo seus mil fulgores
O leão4
nas selvas, rugindo irado,
Povoa os vales de seus horrores.
De noite a lua cingida5
em crepes6
Paira sinistra no erguido
serro7;
Em roda estrelas amarelentas
Semelham8
círios dalgum enterro.
Meus olhos, fartos de tantas
lágrimas,
A custo se erguem ao firmamento.
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Onde me leva meu pensamento.
Aqui bem vejo mil formosuras,
Moças que matam com seus olhares...
Mas eu não posso com tais
saudades,
Como as que sinto pelos meus
lares!
Eu quero ainda dormir às soltas9
Nas pobres palhas do meu colmado10
Contar à virgem dos meus amores
Tristes tormentos dum "engajado"!
E quando eu morra... (Mísera
vida,
Que eu te não deixe na terra
alheia!)
Fiquem ao menos meus tristes
ossos
No cemitério da minha aldeia!
J.Simões Dias
oooOOOooo
Notas:
1- (morrinha)
Pode significar, entre outras
coisas:
. Chuva miudinha e persistente
que mal se vê mas molha
e não pára o
dia inteiro;
. Sentimento de tristeza,
melancolia;
. Fedor persistente, mau cheiro,
catinga;
. Indivíduo vacilante
e fraco, incapaz de tomar
decisões rápidas
e eficazes;
. Preguiça, indolência,
prostação, quebreira.
2- (engajado) Envolvido politicamente
ou ao serviço de uma causa.
3- (plaga) Poético: País;
região.
4- (leão) Figurativo:
alguém que fala mais
alto; indivíduo de
grande coragem.
5- (cingir) Apertar (à volta,
em roda).
6- (crepes) Fitas negras que
se usam em sinal de luto;
tapeçarias fúnebres.
7- (serro) Aresta de um monte
(alteração de serra).
8- (semelhar) Ser semelhante
a; parecer-se com.
9- (às soltas) À
larga, livremente, desafogadamente,
em liberdade.
10-(colmado) Casa de colmo;
palhota.
oooOOOooo
|
|
|
REFLEXÕES:
1.
Significado do poemeto "Morrinha brasileira"
2.
Como começou o mito do poeta querer ser enterrado
na Benfeita
3.
Vontade do poeta em querer ser sepultado na Benfeita
oooOOOooo
1.
Significado do poemeto "Morrinha brasileira"
Pessoalmente,
parece-me um pouco arriscado fazer uma apreciação
global de um poema através de uma quadra dele
descontextualizada e até mesmo temerário
querer atribuir-lhe uma vontade post mortem
expressa pelo seu autor. No mínimo, imprudente!
No entanto, atrevo-me a alvitrar uma interpretação
meramente pessoal deste poema, no seu todo, e que
considero difícil dada a complexidade de emoções
que nos são transmitidas pelo seu autor.
A
forma
"A Folha, microcosmo
literário", era uma modesta revista literária, criada
por João Penha, estudante boémio da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (curso
que só viria a completar com 34 anos de idade),
impressa numa única folha de papel, dum lado
e doutro, (daí o seu nome), dobrada em 4, o
que dava 8 páginas de formato um pouco mais
pequeno que o actual A4, para mais tarde poder ser
cortada, cozida e encadernada.
Foi idealizada para
ser "um espaço eclético aberto às mais variadas correntes
estéticas", um campo experimental onde
se ensaiaram as novas tendências da poesia,
um espaço de criação literária.
Era distribuída por assinatutra a um público bastante
restrito e seleccionado, portanto, de projecção
nacional e tiragem bastante reduzidas para a época.
Não era, por motivos óbvios, o local
mais adequado para se veicular publicamente uma última
vontade!
Os poemas escritos
por Simões Dias entre os 18 e os 28 anos constituem,
de facto, a parte principal da sua obra poética
representada pelo seu livro "As Peninsulares",
de 1876, onde juntou os seus primeiros livros de versos:
"O Mundo Interior", "Poemas Líricos"
e "A Hóstia de Oiro". Porém,
entre 1861 e 1870, não houve em Coimbra e arredores
publicação que não tivesse escritos
seus, como: Tira-teimas, Hinos e Flores, Fósforo,
Harpa, Prelúdios Literários, Átila,
Academia, Crisálida, Folha, Povo, País,
Estrela da Beira e Comércio de Coimbra.
Embora residente em
Elvas, de 1868 a 1870, Simões Dias, continuou a colaborar
com alguns desses periódicos literários da época,
como já o fazia em Coimbra, por forma a manter vivo
o seu nome no meio literário e o convívio entre os
seus pares.
"Morrinha
brasileira", publicado na "Folha",
em 1868, tanto quanto me tenha sido dado a pesquisar,
não voltou a ser publicado ou reeditado em
nenhum outro jornal, revista ou livro, com esse ou
outro título.
No entanto, "A
Hóstia d'Oiro", um livro de 208 páginas,
publicado em Elvas, em 1869, poema herói-cómico
em 10 cantos, onde se põe em relevo o estado
da classe clerical e a prepotência dos capitalistas
da época, e se levanta a voz em favor dos escravos
do privilégio, refunde alguns versos de "Morrinha
brasileira", no seu canto IV, numa nova "roupagem"
de inconfundível semelhança, numa narrativa
jocosa e exagerada, uma sátira política
com o propósito de fazer rir, mas de valor
literário incontestável:
Morrinha
brasileira
(O engajado)
O sol ardente sobre estas
plagas
Dardeja a prumo seus mil fulgores
O leão nas selvas, rugindo irado,
Povoa os vales de seus horrores.
De noite a lua cingida
em crepes
Paira sinistra no erguido serro;
Em roda estrelas amarelentas
Semelham
círios dalgum enterro.
Meus olhos, fartos de tantas lágrimas,
A custo se erguem ao firmamento.
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Onde me leva meu pensamento.
Aqui bem vejo mil formosuras,
Moças que matam com seus olhares...
Mas eu não posso com tais saudades,
Como as que sinto pelos meus lares!
Eu quero ainda dormir às soltas
Nas pobres palhas do meu colmado,
Contar à virgem dos meus amores
Tristes tormentos dum "engajado"!
E quando eu morra... (Mísera vida,
Que eu te não deixe na terra alheia!)
Fiquem ao menos meus tristes ossos
No cemitério da minha aldeia!
J.Simões Dias
in: A Folha - Elvas,
1868
Edição nº 3, pág.
23
|
|
A Hóstia
de Oiro
...
"Não tenho que fazer; vou-me cantando
Até que ela apareça." Isto dizia
De si p'ra si o Bonifácio. Logo
Encadeando foi a trouxe-mouxe
Estas solenes quadras numerosas,
D'algum Bandarra incógnito feitura:
"Olhos cansados, lumes extintos
A custo se erguem ao firmamento,
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Aonde me leva meu pensamento.
Em broncas penhas, dos lobos coito,
As almas vivem dos desgraçados;
E farejando dinheiro e honras
Em volta rugem leões irados;
Então a lua, cingida em crepes
Paira sinistra no erguido serro;
E em roda estrelas amarelentas
Semelham círios de algum enterro.
Tal me tem sido continuo a vida,
Lume sem brilho, tecto sem lares,
Lua mortuária, lívidos astros
Sós contemplando negros pesares.
Feliz quem pode dormir às soltas
Nas pobres palhas do seu colmado,
Contar à virgem dos seus amores
Doces tormentos d'um namorado.
E quando eu morra (mísera vida!
Sorte mofina que em vão maldigo!)
Nem mesmo conto para chorar-me
Com o piedoso pranto de amigo.
...
in: A Hóstia
de Oiro - Elvas, 1869
Canto IV, págs. 80-81
|
|
A última quadra
de Simões Dias até podia ter sido inspirada
pelo poema "Canção do exílio",
do brasileiro Gonçalves Dias, escrito 25 anos
antes, em Coimbra, onde se encontrava a cursar Direito
na Universidade de Coimbra. Os versos finais, com
alusão à morte, também na última
estrofe, podem ser colocados em paralelo:
"Não permita
Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá."
Em 1924, Oswald de
Andrade, no poema "Canto de Regresso à
Pátria", veio a fazer isso mesmo:
"Ouro, terra,
amor e rosas,
Eu quero tudo de lá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá!"
A verdade é
que, se alguns versos deste poema foram ou não
inspirados noutro poema qualquer, dele próprio
ou de outro poeta, ou surgiram na hora por inspiração
da sua "musa particular", ou, como ele próprio
afirma na "Hóstia d'Oiro", tiveram
como inspiração as "solenes quadras
d'algum Bandarra incógnito", comparando-se
em sorte ao célebre sapateiro, poeta e profeta, de
Trancoso... isso, pouco importa! O que importa é
o desejo expresso de uma pessoa, de querer ser enterrada
neste ou naquele lugar! E, isso, salvo melhor opinião,
não é coisa que se escreva num poema
publicado numa revista de ensaio literário
ou se tire por dedução, por estranhos,
e se decida um século depois da sua morte!
De acordo com o Visconde
de Sanches de Frias, autor de uma excelente biografia
sobre Simões Dias, de quem era particular amigo, a
última edição do livro "Peninsulares", de 1899, foi
revista e arrumada pessoalmente pelo autor, de forma
definitiva, para evitar «fanatismos de admiradores
ou futuros empresários de minúcias abandonadas que
venham dar nova disposição à sua obra ou acrescentar-lhe,
como se tem feito, em edições gananciosas, títulos,
dizeres, e composições completamente condenadas pelo
autor». (pág. XXXI)
Nele incluiu todas
as suas elegias, canções, odes e poemas, não tendo
desperdiçado nada. Era um celeiro de que não havia
grãos perdidos, sem que o cultor os conhecesse. Logo,
parece ser lógico concluir que o poema "Morrinha Brasileira",
por não constar neste livro, nem em qualquer outro,
seria um dos muitos grãos perdidos a que Simões Dias
daria pouco valor!
Acresce que, ao longo da já referida extensa
e pormenorizada biografia nunca, em lugar algum, foi
feita qualquer referência ao poema "Morrinha
brasileira" ou ao eventual desejo de Simões
Dias querer ser sepultado na Benfeita.
Ainda sobre este assunto,
e de uma forma directa, Simões Dias participava
a Sanches de Frias, em Maio de 1898 (págs.
55/56 do mesmo livro "Figuras de Gesso",
de 1906:
«- Apesar
da minha má disposição de espírito
me não dar muito para isso, estou empenhado
na revisão, emendas e agrupamentos das minhas
"Peninsulares"; tenciono, por economia,
converter os dois volumes num só.
- Edição definitiva, como hoje se diz?
- Exactamente. Hei-de declarar que, fora dessa edição,
nada de aproveitável deixarei disperso, pois
não quero, embora valha pouco, que procedam
comigo como com o João de Deus, numa edição
póstuma, a que juntaram peças, de há
muito desprezadas e condenadas por ele.
- Bem entendido, sem dúvida.
- E tenho que fazer-te um pedido a esse respeito.
- Dirás.
- A resenha biográfica e o estudo crítico,
que hão-de preceder os versos, serão
escritos por ti.»
Portanto, e reforçando
o que anteriormente foi dito, ao não incluir
o poema "Morrinha brasileira" nas suas "Peninsulares",
nesta empenhada revisão definitiva, 10 meses
antes de falecer, o poeta pura e simplesmente, ou
o ignorou, ou não lhe atribuiu qualquer significado
especial.
Caso o poeta atribuísse
ao poema "Morrinha brasileira" a importância que seria
devida a um texto que encerrasse uma sua última vontade;
isto, admitindo que ainda se lembrava de o ter escrito
31 anos antes, lógico seria que o incluísse nas suas
"Peninsulares". Não o fazendo, podemos admitir que
apenas o considera como lixo perdido no "entulho":
«... Alguns lanços vieram abaixo, outros
se ergueram desde os alicerces, e neste destruir e
desfazer muitos materiais se perderam no entulho,
mas também muitas peças foram aproveitadas para a
nova construção.» (pág.68)
E ainda afirma ter
mandado vários "papéis velhos"
para publicação na imprensa, em 1868
(ano em que publicou "Morrinha brasileira"),
com a mesma convicção que os mandaria
para o fogão, apenas não o tendo feito
por amor próprio. Logo, também se pode
concluir que "Morrinha brasileira" não
serviu de pasto às chamas apenas por uma questão
de "vaidade"!
«... Ao sair dos bancos universitários
para as lutas ásperas de uma existência
mais trabalhosa e mais difícil, chegou a hora
de fazer inventário ao passado e de arregaçar
os braços para outras cavas mais frutíferas
que esta de alinhavar esbocetos de novela.
Reuniram-se os papéis velhos e mandaram-se
para a imprensa, como podíamos atirá-los
para o fogão. Em qualquer destas hipóteses
liquidávamos contas. Até que ponto influiu
o amor próprio na deliberação
preferida, seria ridículo explicar.»
(pág.70)
Por último,
se considerarmos o pensamento de Simões Dias nas "Considerações
prévias" do seu livro "Figuras de Gesso", escritas
e assinadas em 1885, única vez que me lembro de encontrar
uma referência sua a "testamentos", não me ficam dúvidas
de que o poema "Morrinha brasileira" não teve, para
Simões Dias, o significado que lhe quiseram atribuir,
em 1999.
«... Reimprime-se, porque recorda um tempo
que não volta (o que aliás deve ser indiferente para
quem lê), em segundo lugar porque, sendo uma estreia
e portanto o primeiro passo numa carreira, que já
vai longa, não pode ter as responsabilidades de um
trabalho feito em melhores condições, e finalmente
porque as últimas edições de um livro são como os
últimos testamentos, que revogam os primeiros.»
(pág.72)
Assim, e considerando esta perspectiva de Simões
Dias, poderíamos até conjecturar que
a última quadra do excerto da sua "Hóstia
d'Oiro", de 1869, (ver acima) veio revogar a
última quadra da "Morrinha brasileira",
de 1868; ou seja, ao refundir o poema "Morrinha
brasileira" na "Hóstia d'Oiro",
Simões Dias, não só o corrige
como também declara a sua extinção.
Por outras palavras poderíamos afirmar que,
se Simões Dias tivesse sido um pintor famoso,
a tela "Morrinha brasileira", pintada em
1868, nunca teria passado de um esboço que
deixou de existir porque sobre ele foram aplicadas
novas tintas, no ano seguinte, tendo ficado na "pré-história"
da "Hóstia d'Oiro".
O
conteúdo
O título "Morrinha
brasileira" deixa o leitor um tanto perplexo
e apreensivo pois não está habituado
a ouvir tal expressão e, "morrinha",
é uma palavra de origem um tanto obscura que
pode ter vários significados. O subtítulo
"(O engajado)", entre parêntesis,
ainda o ajuda a confundir-se mais, pelo que fica à
espera que o conteúdo do poema o ajude a esclarecer
o porquê da escolha destas expressões,
uma vez que o título e o subtítulo,
não têm, aparentemente, qualquer correlação.
Simões Dias,
ao chegar a Elvas, terra onde o calor convidava à
lazeira, para prover o sustento da sua recém
formada família, teve de dar aulas particulares,
enquanto não saiu a sua nomeação
oficial para professor, cargo a que tinha concorrido
ainda em Coimbra. E, desde logo começou a colaborar
no jornal "A Democracia Pacífica",
de Elvas, onde conheceu o reverendo Henrique José
de Andrade, de quem se tornou grande amigo, e onde
experimentou as suas capacidades como crítico
político contra alguns jornais reaccionários
da época, revelando uma coragem de leão
que, nas selvas da política, começou
a espalhar as suas ideias e engajando-se politicamente
com os ideais progressistas da época (título,
sub-título e primeira quadra).
Em casa, o estado
de saúde da sua esposa começava a mostrar
motivos para grande consternação e Simões
Dias sofre com a antevisão de um final próximo
e comove-se (segunda e terceira quadra).
Fora de casa sente-se cortejado pelas mulheres que
o rodeiam mas mantém-se fiel à sua amada,
não perdendo a esperança de poder voltar
a partilhar com ela os bons momentos e as suas lutas
políticas (quarta e quinta quadra).
Estes versos pranteiam
o seu "exílio", quando aceitou transferir-se
de Coimbra para Elvas, e se propôs aceitar um
cargo de professor, cargo que já lhe tinha
sido oferecido na Universidade, num contexto mais
vantajoso, e ele havia recusado para ir viver com
a sua esposa para Elvas (por amor e compaixão?).
Seria o seu estado de saúde conhecido pelos
médicos de Coimbra e suficientemente grave
e irreversível para que apenas se aconselhasse
um final de vida com paz, amor e tranquilidade e,
nisso, também se tivesse engajado o poeta,
seu amantíssimo marido?
Todo este poema está
envolto numa linguagem figurativa e aparenta ser um
grito de dor, de saudade, de revolta por alguma coisa
que o poeta não aceitava, nem podia alterar.
A última quadra, embora pareça estar completamente
deslocada do contexto e ali haja sido colocada sem
qualquer razão objectiva, exprime o desânimo
de um jovem de 24 anos ao imaginar a morte de uma
pessoa, incluindo a sua ou a da sua amada esposa,
longe da sua terra e dos seus amigos!
No final da leitura
do poema (e adivinhando os motivos que levaram o poeta
a engajar-se naquela difícil e penosa missão)
fica-se com a sensação de que o título
"Morrinha brasileira" significa um misto
de tristeza e melancolia, de moleza e apatia que provoca
prostação e quebreira num indivíduo
que se comprometeu numa missão (O engajado)
mas que, desesperadamente, vai tomando consciência
de que o fim está próximo (a morte,
a curto prazo, da sua bem amada esposa). O seu casamento
com Guilhermina
da Conceição duraria apenas sete
meses e meio!
oooOOOooo
2.
Como começou o mito do poeta querer ser enterrado
na Benfeita
Por vezes, à
força de se repetir muitas vezes a mesma ideia
(seja ela verdadeira ou falsa) corremos o risco de
perpetuá-la e torná-la um "mito".
O Dr. Mário
Mathias, na sua publicação de 1969,
então com 70 anos de idade, "Os
Cemitérios da Benfeita" sugere, a
propósito da última quadra deste poema,
o seguinte:
"Parece mesmo que queria ser sepultado no nosso
cemitério...", "Pelo menos é o que claramente
se deduz..."
Diz-me a experiência
de vida que "as coisas nem sempre são aquilo que parecem
ser" e "aquilo que parece ser a umas pessoas pode
não parecer a outras", pois o "parecer" é subjectivo
e, como tal, têm relação directa com a quantidade
de conhecimento adquirido sobre determinado assunto;
logo, aquilo que "pareceu" ao Dr.Mário Mathias, com
a informação de que dispunha, na altura, sobre a vida
e a morte do poeta, podia não ter qualquer correspondência
objectiva com aquilo que, verdadeiramente, o poeta
pensaria sobre o assunto, depois.
Porém, o que nos parece
curioso é que a resolução da retirada dos seus restos
mortais e os do seu tio, o arcediago José Simões
Dias, do jazigo de família, propriedade deste
último, de Coimbra para o cemitério
da Benfeita, tivesse tido como justificação uma simples
dedução ou interpretação de uns versos que o poeta
escreveu ainda muito jovem, numa altura conturbada
da sua vida, e não da sua vontade, clara e inequivocamente
expressa.
O "desejo"
de ser sepultado no cemitério da Benfeita,
sugerido pelo Dr.Mário Mathias, quanto a nós,
deveria merecer o mesmo interesse e atenção
que a penúltima quadra do poema "O
teu lenço", este, sim, publicado por
Simões Dias, nas suas "Peninsulares":
"Quanto mais me ponho a vê-lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p'ra cova."
São apenas figuras
de estilo, ou de linguagem, que se utilizam para tornar
uma mensagem mais ampla, mais expressiva e mais significativa,
principalmente em poesia lírica, ilustrando
um sentimento e enriquecendo uma descrição.
Ora, à data
do falecimento do poeta Simões Dias, 03/03/1899, ainda
faltavam 5 meses para o futuro Dr.Mário Mathias nascer,
o que só viria a acontecer em 11/08/1899, portanto,
qualquer referência à vida ou morte do poeta teria
de ter como base uma pesquisa às notícias publicadas
nos jornais da época ou noutras fontes escritas.
Assim sendo, escaparam
ao conhecimento do Dr.Mário Mathias alguns factos
que, quanto a nós, poderiam ser importantes para poder
avaliar a importância de uma quadra de um poema banal,
no contexto da vida pessoal de um poeta lírico e do
seu verdadeiro interesse, ou última vontade
(aos 24 anos de idade!) em querer ser realmente sepultado
na sua aldeia natal.
Em "Os Cemitérios
da Benfeita", ao afirmar que Simões Dias "foi
inumado no cemitério do Alto de São João, no jazigo
do seu íntimo e dedicado amigo Visconde Sanches de
Frias, de Pombeiro da Beira, onde, julgamos, se encontra
ainda", Mário Mathias cometeu algumas imprecisões,
reveladoras de que alguns detalhes passaram ao seu
conhecimento:
a) O corpo de Simões
Dias não esteve no cemitério do Alto
de São João, esteve sim, e provisoriamente,
no jazigo particular do seu amigo Júlio César dos
Santos, no Cemitério dos Prazeres.
b) Os restos mortais
do Dr. Simões Dias foram trasladados para o seu jazigo
de família no Cemitério da Conchada, em Coimbra, em
10/04/1900, ainda antes de Mário Mathias haver completado
1 ano de idade e, aos 70 anos, ainda o julgava em
Lisboa, provavelmente abandonado pela família,
em terra alheia.
A propósito daqueles
versos e, provavelmente, tendo como argumento principal
a interpretação pessoal que deles fez o Dr. Mário
Mathias, em 1969, por causa do seu "parece mesmo"
e do "claramente se deduz" é que os restos
mortais do poeta Simões Dias foram transladados para
o Cemitério da Corga, em 13/10/1999.
Ou seja, pelo que atrás foi dito, em 1969,
o Dr.Mário Mathias, sem o saber, foi retirar
do "lixo" uma quadra desprezada pelo seu
autor, cem anos antes, atribuindo-lhe o significado
de um desejo por concretizar e, em 1999, os benfeitenses,
cheios de boa-vontade e respeito pela sua pessoa,
não só foram "reacender um fogo
extinto" como também o quiseram perpetuar!

Não estamos, de forma
alguma, contra o facto das ossadas do poeta Simões
Dias terem sido trasladadas para o Cemitério da Benfeita,
sua terra natal. Isso só nos enche de orgulho e satisfação
e, qualquer dedução ou interpretação destas reflexões
nesse enganoso sentido, estaria profundamente errada;
embora, talvez, tivéssemos preferido para guarda
dos seus restos mortais, o Panteão Nacional, (já
agora!) o que lhe daria maior importância e destaque
a nível nacional e não uma cobertura de tijolo
burro sobre a qual passa e pisa, com a maior indiferença,
(quase) toda a gente que visita o cemitério
da Benfeita.
oooOOOooo
3.
Vontade do poeta em querer ser sepultado na Benfeita
Na
verdade, uma coisa era o que parecia ao Dr.Mário
Mathias, em 1969, em relação a uma pessoa;
e outra, foi o que se decidiu, em 1999, (trinta
anos depois) em relação a duas pessoas,
tomando como argumento válido uma suposição
apressada (eventualmente pouco amadurecida ou mesmo
desactualizada), e nela tendo participado: a Câmara
Municipal de Arganil; a Junta de Freguesia da Benfeita
(que ofereceu um importante donativo de 100.000$00
para a reedição comemorativa das "Peninsulares";
a Liga de Melhoramentos da Freguesia da Benfeita (que
organizou peditórios e recolha de donativos
para pagar toda a obra do cemitério); a Editorial
Moura Pinto e a Comissão do Povo da Benfeita,
constituída pelos senhores: Carlos Dias (Carlos
da Capela) e Carlos Alves Cerejeira, entre outros.
Todos eles, sem qualquer sombra de dúvida,
com as melhores intenções e, todos eles,
merecedores da maior consideração e
respeito! Mas, em minha opinião, todos eles,
profundamente enganados!
De
facto, qualquer pessoa bem informada se questionaria
porque é que aquele alegado desejo do poeta,
de querer ser enterrado na sua terra natal, sugerido
por Mário Mathias, não constava da sua longa biografia,
feita em vida pelo seu amigo e confidente, Visconde
David Correia Sanches de Frias (1845-1922), se isso
correspondesse efectivamente a uma vontade sua, nem
constava no seu testamento ou últimas vontades,
uma vez que a sua família manteve provisoriamente
o seu corpo em Lisboa, durante um ano e o sepultou,
definitivamente, em 10/04/1900, no Jazigo de Família,
em Coimbra.
O
Dr. Mário Mathias não estava informado
pois pensava, em 1969, que os restos mortais do poeta
ainda estivessem em Lisboa, abandonados pela família
no jazigo de um amigo no cemitério do Alto
de São João!
Sucede que, desde 1881,
a família do poeta Simões Dias (da parte
do seu tio) já tinha adquirido um jazigo duplo
em Coimbra, no cemitério da Conchada. O terreno
foi comprado em 31/05/1881, no talhão 12, e
aí mandou erigir um jazigo com sarcófago,
nº 56-58, com capacidade para 12 pessoas.
Por seu lado, o pai do poeta, António Simões
Dias, ofereceu dois terrenos para o Cemitério
da Corga, na Benfeita; um, para a sua construção
inicial que se concluiu em 1894 (e onde viria a ficar
sepultada a sua esposa Maria do Rosário Gonçalves,
falecida em 1903) e, outro, para a sua primeira ampliação,
que só viria a concretizar-se em 1911. Este
último lote de terreno, segundo informação
do Dr.Mário Mathias, teria sido doado a troco
de um espaço para a construção
de um mausoléu para si e para a sua família.
Porém, António Simões Dias, nascido
nas Luadas, em 20/05/1817 viria a falecer na Benfeita
em 18/01/1911, onde foi sepultado a 20 do mesmo, e
essa obra nunca chegou a ser efectuada, nem por si
nem pelos seus familiares. Claro que, quando isto
aconteceu, já o poeta Simões Dias tinha
falecido há muito, e também, há
muito, o outro ramo da família Simões
Dias, já tinha mandado construir o tal jazigo
da Conchada, sendo esse o local escolhido pelo poeta,
ou pela sua família, para a sua última
morada.
Isto apenas pode justificar a razão pela qual
o resto da família não se mostrou interessada
na construção do mausoléu da
Benfeita, uma vez que já dispunha de outro,
em Coimbra. E, por isso, lá se fizeram sepultar,
Maria Henriqueta, segunda mulher do poeta, Maria Arminda,
Maria Alice e Raquel, bisnetas do poeta, por parte
da sua única filha Judite de Meneses, entre
outros.
Conclusão:
Mandar retirar os restos
mortais do poeta Simões Dias e do seu tio,
do jazigo que ostentava o seu nome, com base, apenas,
na interpretação de uns versos, aparentemente,
desprezados pelo próprio autor, pessoalmente,
parece-me uma atitude um tanto curiosa, não
querendo com isto levantar qualquer tipo de suspeição
ou polémica. É apenas, e só,
uma apreciação pessoal, depois de me
ter interessado pelo tema. Simões Dias está
na Benfeita e deixá-lo estar! Paz à
sua alma!
Acresce dizer, para
finalizar, que o "Jazigo do Arcediago José
Simões Dias e sua família", no
cemitério da Conchada, em Coimbra, apresenta
um aspecto bastante degradado por ter sido deixado
totalmente ao abandono durante décadas, embora
ainda lá estejam 7 corpos, dos 12 que lá
foram sepultados. Fica, agora, uma pergunta, aparentemente
sem resposta: E o seu tio, nascido nas Luadas e falecido
em 23/10/1903 num hospital em Berlim, onde foi buscar
cura para um cancro na laringe, com 54 anos de idade,
também desejava ser retirado do jazigo que
ostentava o seu nome, em Coimbra, e ser sepultado
na Benfeita? Infelizmente, para isso, não encontrei
qualquer resposta!
Vivaldo Quaresma
31/08/2017