JOSÉ  SIMÕES  DIAS

Reflexões sobre um poema esquecido!

por Vivaldo Quaresma

Corre na Benfeita a ideia firme e segura de que o poeta Simões Dias foi trasladado, cem anos após a sua morte, do cemitério de Coimbra para o cemitério da Benfeita, para dar cumprimento a um desejo seu, expresso numa quadra de um poema que publicou em 1868, na revista literária "A Folha", quando tinha, apenas, 24 anos de idade!

Julgo como pouco provável, porém, que os restos mortais do poeta (depois de ter estado provisoriamente no jazigo de um amigo, em Lisboa, onde a sua memória foi homenageada, durante um ano, por amigos, colegas, alunos, gente próxima, simpatizantes e admiradores) tenham sido trasladados para o jazigo de família, em Coimbra, e não directamente para o Cemitério da Benfeita, se isso correspondesse, efectivamente, à sua vontade; ou seja, se era para ir para a Benfeita, porque é que foi para Coimbra? E, se foi para Coimbra, será que alguma vez desejou verdadeiramente ser sepultado na Benfeita?

Não duvido que essa pudesse ter sido a razão evocada para a remoção das ossadas do poeta para a Benfeita, como aliás o atestam, os "riscos e gatafunhos" exibidos nas "lápides" de chapa ferrujenta, no cemitério da Benfeita; mas, terão havido outras razões? Achei o tema interessante e digno de alguma reflexão, não só sobre o significado do poema para o poeta, como da maneira como, alegadamente, dizem que quis transmitir uma última vontade, tão séria, importante e definitiva.

Lápide da trasladação
Foto da data
Lápide da quadra
Foto da quadra

Pessoalmente, acho que o Dr. José Simões Dias, poeta, professor, político e orador vibrante, profundo conhecedor do amar e do sofrer, do escrever e do falar, se o quisesse ter feito por escrito, mesmo que dispensasse a fórmula testamentária habitual, teria encontrado uma forma mais eloquente de o fazer (provavelmente em versos decassilábicos), mais digna (com um título mais apropriado) e mais politicamente correcta (elogiando a terra onde nasceu e justificando o seu último desejo), do que a forma, como dizem que o fez, em "Morrinha brasileira" (!?!).

Morrinha1 brasileira
(O engajado2)


O sol ardente sobre estas plagas3 
Dardeja a prumo seus mil fulgores
O leão4 nas selvas, rugindo irado,
Povoa os vales de seus horrores.

De noite a lua cingida5 em crepes6 
Paira sinistra no erguido serro7;
Em roda estrelas amarelentas
Semelham8 círios dalgum enterro.

Meus olhos, fartos de tantas lágrimas,
A custo se erguem ao firmamento.
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Onde me leva meu pensamento.

Aqui bem vejo mil formosuras,
Moças que matam com seus olhares...
Mas eu não posso com tais saudades,
Como as que sinto pelos meus lares!

Eu quero ainda dormir às soltas9 
Nas pobres palhas do meu colmado10 
Contar à virgem dos meus amores
Tristes tormentos dum "engajado"!

E quando eu morra... (Mísera vida,
Que eu te não deixe na terra alheia!)
Fiquem ao menos meus tristes ossos
No cemitério da minha aldeia!

J.Simões Dias

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Notas:

1- (morrinha) Pode significar, entre outras coisas:
. Chuva miudinha e persistente que mal se vê mas molha e não pára o dia inteiro;
. Sentimento de tristeza, melancolia;
. Fedor persistente, mau cheiro, catinga;
. Indivíduo vacilante e fraco, incapaz de tomar decisões rápidas e eficazes;
. Preguiça, indolência, prostação, quebreira.
2- (engajado) Envolvido politicamente ou ao serviço de uma causa.
3- (plaga) Poético: País; região.
4- (leão) Figurativo: alguém que fala mais alto; indivíduo de grande coragem.
5- (cingir) Apertar (à volta, em roda).
6- (crepes) Fitas negras que se usam em sinal de luto; tapeçarias fúnebres.
7- (serro) Aresta de um monte (alteração de serra).
8- (semelhar) Ser semelhante a; parecer-se com.
9- (às soltas) À larga, livremente, desafogadamente, em liberdade.
10-(colmado) Casa de colmo; palhota.

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Veja, aqui, a publicação original!
(1,20 MB, PDF, "A Folha", 8 páginas)

REFLEXÕES:

1. Significado do poemeto "Morrinha brasileira"

2. Como começou o mito do poeta querer ser enterrado na Benfeita

3. Vontade do poeta em querer ser sepultado na Benfeita

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1. Significado do poemeto "Morrinha brasileira"

Pessoalmente, parece-me um pouco arriscado fazer uma apreciação global de um poema através de uma quadra dele descontextualizada e até mesmo temerário querer atribuir-lhe uma vontade post mortem expressa pelo seu autor. No mínimo, imprudente! No entanto, atrevo-me a alvitrar uma interpretação meramente pessoal deste poema, no seu todo, e que considero difícil dada a complexidade de emoções que nos são transmitidas pelo seu autor.

A forma

"A Folha, microcosmo literário", era uma modesta revista literária, criada por João Penha, estudante boémio da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (curso que só viria a completar com 34 anos de idade), impressa numa única folha de papel, dum lado e doutro, (daí o seu nome), dobrada em 4, o que dava 8 páginas de formato um pouco mais pequeno que o actual A4, para mais tarde poder ser cortada, cozida e encadernada.

Foi idealizada para ser "um espaço eclético aberto às mais variadas correntes estéticas", um campo experimental onde se ensaiaram as novas tendências da poesia, um espaço de criação literária. Era distribuída por assinatutra a um público bastante restrito e seleccionado, portanto, de projecção nacional e tiragem bastante reduzidas para a época. Não era, por motivos óbvios, o local mais adequado para se veicular publicamente uma última vontade!

Os poemas escritos por Simões Dias entre os 18 e os 28 anos constituem, de facto, a parte principal da sua obra poética representada pelo seu livro "As Peninsulares", de 1876, onde juntou os seus primeiros livros de versos: "O Mundo Interior", "Poemas Líricos" e "A Hóstia de Oiro". Porém, entre 1861 e 1870, não houve em Coimbra e arredores publicação que não tivesse escritos seus, como: Tira-teimas, Hinos e Flores, Fósforo, Harpa, Prelúdios Literários, Átila, Academia, Crisálida, Folha, Povo, País, Estrela da Beira e Comércio de Coimbra.

Embora residente em Elvas, de 1868 a 1870, Simões Dias, continuou a colaborar com alguns desses periódicos literários da época, como já o fazia em Coimbra, por forma a manter vivo o seu nome no meio literário e o convívio entre os seus pares.

"Morrinha brasileira", publicado na "Folha", em 1868, tanto quanto me tenha sido dado a pesquisar, não voltou a ser publicado ou reeditado em nenhum outro jornal, revista ou livro, com esse ou outro título.

No entanto, "A Hóstia d'Oiro", um livro de 208 páginas, publicado em Elvas, em 1869, poema herói-cómico em 10 cantos, onde se põe em relevo o estado da classe clerical e a prepotência dos capitalistas da época, e se levanta a voz em favor dos escravos do privilégio, refunde alguns versos de "Morrinha brasileira", no seu canto IV, numa nova "roupagem" de inconfundível semelhança, numa narrativa jocosa e exagerada, uma sátira política com o propósito de fazer rir, mas de valor literário incontestável:

Morrinha brasileira
(O engajado)

O sol ardente sobre estas plagas 
Dardeja a prumo seus mil fulgores
O leão nas selvas, rugindo irado,
Povoa os vales de seus horrores.

De noite a lua cingida em crepes
Paira sinistra no erguido serro;
Em roda estrelas amarelentas
Semelham círios dalgum enterro.


Meus olhos, fartos de tantas lágrimas,
A custo se erguem ao firmamento.
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Onde me leva meu pensamento.


Aqui bem vejo mil formosuras,
Moças que matam com seus olhares...
Mas eu não posso com tais saudades,
Como as que sinto pelos meus lares!

Eu quero ainda dormir às soltas
Nas pobres palhas do meu colmado,
Contar à virgem dos meus amores
Tristes tormentos dum "engajado"!


E quando eu morra... (Mísera vida,
Que eu te não deixe na terra alheia!)
Fiquem ao menos meus tristes ossos
No cemitério da minha aldeia!

J.Simões Dias

in: A Folha - Elvas, 1868
Edição nº 3, pág. 23

A Hóstia de Oiro

...

"Não tenho que fazer; vou-me cantando
Até que ela apareça." Isto dizia
De si p'ra si o Bonifácio. Logo
Encadeando foi a trouxe-mouxe
Estas solenes quadras numerosas,
D'algum Bandarra incógnito feitura:

"Olhos cansados, lumes extintos
A custo se erguem ao firmamento,
Oh céus! Levai-me pelos espaços
Aonde me leva meu pensamento.

Em broncas penhas, dos lobos coito,
As almas vivem dos desgraçados;
E farejando dinheiro e honras
Em volta rugem leões irados
;

Então a lua, cingida em crepes
Paira sinistra no erguido serro;
E em roda estrelas amarelentas
Semelham círios de algum enterro.

Tal me tem sido continuo a vida,
Lume sem brilho, tecto sem lares,
Lua mortuária, lívidos astros
Sós contemplando negros pesares.

Feliz quem pode dormir às soltas
Nas pobres palhas do seu colmado,
Contar à virgem dos seus amores
Doces tormentos d'um namorado.

E quando eu morra (mísera vida!
Sorte mofina que em vão maldigo!)
Nem mesmo conto para chorar-me
Com o piedoso pranto de amigo.

...

in: A Hóstia de Oiro - Elvas, 1869
Canto IV, págs. 80-81

A última quadra de Simões Dias até podia ter sido inspirada pelo poema "Canção do exílio", do brasileiro Gonçalves Dias, escrito 25 anos antes, em Coimbra, onde se encontrava a cursar Direito na Universidade de Coimbra. Os versos finais, com alusão à morte, também na última estrofe, podem ser colocados em paralelo:

"Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá."

Em 1924, Oswald de Andrade, no poema "Canto de Regresso à Pátria", veio a fazer isso mesmo:

"Ouro, terra, amor e rosas,
Eu quero tudo de lá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá!"

A verdade é que, se alguns versos deste poema foram ou não inspirados noutro poema qualquer, dele próprio ou de outro poeta, ou surgiram na hora por inspiração da sua "musa particular", ou, como ele próprio afirma na "Hóstia d'Oiro", tiveram como inspiração as "solenes quadras d'algum Bandarra incógnito", comparando-se em sorte ao célebre sapateiro, poeta e profeta, de Trancoso... isso, pouco importa! O que importa é o desejo expresso de uma pessoa, de querer ser enterrada neste ou naquele lugar! E, isso, salvo melhor opinião, não é coisa que se escreva num poema publicado numa revista de ensaio literário ou se tire por dedução, por estranhos, e se decida um século depois da sua morte!

De acordo com o Visconde de Sanches de Frias, autor de uma excelente biografia sobre Simões Dias, de quem era particular amigo, a última edição do livro "Peninsulares", de 1899, foi revista e arrumada pessoalmente pelo autor, de forma definitiva, para evitar «fanatismos de admiradores ou futuros empresários de minúcias abandonadas que venham dar nova disposição à sua obra ou acrescentar-lhe, como se tem feito, em edições gananciosas, títulos, dizeres, e composições completamente condenadas pelo autor». (pág. XXXI)

Nele incluiu todas as suas elegias, canções, odes e poemas, não tendo desperdiçado nada. Era um celeiro de que não havia grãos perdidos, sem que o cultor os conhecesse. Logo, parece ser lógico concluir que o poema "Morrinha Brasileira", por não constar neste livro, nem em qualquer outro, seria um dos muitos grãos perdidos a que Simões Dias daria pouco valor!

Acresce que, ao longo da já referida extensa e pormenorizada biografia nunca, em lugar algum, foi feita qualquer referência ao poema "Morrinha brasileira" ou ao eventual desejo de Simões Dias querer ser sepultado na Benfeita.

Ainda sobre este assunto, e de uma forma directa, Simões Dias participava a Sanches de Frias, em Maio de 1898 (págs. 55/56 do mesmo livro "Figuras de Gesso", de 1906:

«- Apesar da minha má disposição de espírito me não dar muito para isso, estou empenhado na revisão, emendas e agrupamentos das minhas "Peninsulares"; tenciono, por economia, converter os dois volumes num só.
- Edição definitiva, como hoje se diz?
- Exactamente. Hei-de declarar que, fora dessa edição, nada de aproveitável deixarei disperso, pois não quero, embora valha pouco, que procedam comigo como com o João de Deus, numa edição póstuma, a que juntaram peças, de há muito desprezadas e condenadas por ele.
- Bem entendido, sem dúvida.
- E tenho que fazer-te um pedido a esse respeito.
- Dirás.
- A resenha biográfica e o estudo crítico, que hão-de preceder os versos, serão escritos por ti.»

Portanto, e reforçando o que anteriormente foi dito, ao não incluir o poema "Morrinha brasileira" nas suas "Peninsulares", nesta empenhada revisão definitiva, 10 meses antes de falecer, o poeta pura e simplesmente, ou o ignorou, ou não lhe atribuiu qualquer significado especial.

Caso o poeta atribuísse ao poema "Morrinha brasileira" a importância que seria devida a um texto que encerrasse uma sua última vontade; isto, admitindo que ainda se lembrava de o ter escrito 31 anos antes, lógico seria que o incluísse nas suas "Peninsulares". Não o fazendo, podemos admitir que apenas o considera como lixo perdido no "entulho":
«... Alguns lanços vieram abaixo, outros se ergueram desde os alicerces, e neste destruir e desfazer muitos materiais se perderam no entulho, mas também muitas peças foram aproveitadas para a nova construção.» (pág.68)

E ainda afirma ter mandado vários "papéis velhos" para publicação na imprensa, em 1868 (ano em que publicou "Morrinha brasileira"), com a mesma convicção que os mandaria para o fogão, apenas não o tendo feito por amor próprio. Logo, também se pode concluir que "Morrinha brasileira" não serviu de pasto às chamas apenas por uma questão de "vaidade"!
«... Ao sair dos bancos universitários para as lutas ásperas de uma existência mais trabalhosa e mais difícil, chegou a hora de fazer inventário ao passado e de arregaçar os braços para outras cavas mais frutíferas que esta de alinhavar esbocetos de novela.
Reuniram-se os papéis velhos e mandaram-se para a imprensa, como podíamos atirá-los para o fogão. Em qualquer destas hipóteses liquidávamos contas. Até que ponto influiu o amor próprio na deliberação preferida, seria ridículo explicar.» (pág.70)

Por último, se considerarmos o pensamento de Simões Dias nas "Considerações prévias" do seu livro "Figuras de Gesso", escritas e assinadas em 1885, única vez que me lembro de encontrar uma referência sua a "testamentos", não me ficam dúvidas de que o poema "Morrinha brasileira" não teve, para Simões Dias, o significado que lhe quiseram atribuir, em 1999.
«... Reimprime-se, porque recorda um tempo que não volta (o que aliás deve ser indiferente para quem lê), em segundo lugar porque, sendo uma estreia e portanto o primeiro passo numa carreira, que já vai longa, não pode ter as responsabilidades de um trabalho feito em melhores condições, e finalmente porque as últimas edições de um livro são como os últimos testamentos, que revogam os primeiros.» (pág.72)
Assim, e considerando esta perspectiva de Simões Dias, poderíamos até conjecturar que a última quadra do excerto da sua "Hóstia d'Oiro", de 1869, (ver acima) veio revogar a última quadra da "Morrinha brasileira", de 1868; ou seja, ao refundir o poema "Morrinha brasileira" na "Hóstia d'Oiro", Simões Dias, não só o corrige como também declara a sua extinção. Por outras palavras poderíamos afirmar que, se Simões Dias tivesse sido um pintor famoso, a tela "Morrinha brasileira", pintada em 1868, nunca teria passado de um esboço que deixou de existir porque sobre ele foram aplicadas novas tintas, no ano seguinte, tendo ficado na "pré-história" da "Hóstia d'Oiro".

O conteúdo

O título "Morrinha brasileira" deixa o leitor um tanto perplexo e apreensivo pois não está habituado a ouvir tal expressão e, "morrinha", é uma palavra de origem um tanto obscura que pode ter vários significados. O subtítulo "(O engajado)", entre parêntesis, ainda o ajuda a confundir-se mais, pelo que fica à espera que o conteúdo do poema o ajude a esclarecer o porquê da escolha destas expressões, uma vez que o título e o subtítulo, não têm, aparentemente, qualquer correlação.

Simões Dias, ao chegar a Elvas, terra onde o calor convidava à lazeira, para prover o sustento da sua recém formada família, teve de dar aulas particulares, enquanto não saiu a sua nomeação oficial para professor, cargo a que tinha concorrido ainda em Coimbra. E, desde logo começou a colaborar no jornal "A Democracia Pacífica", de Elvas, onde conheceu o reverendo Henrique José de Andrade, de quem se tornou grande amigo, e onde experimentou as suas capacidades como crítico político contra alguns jornais reaccionários da época, revelando uma coragem de leão que, nas selvas da política, começou a espalhar as suas ideias e engajando-se politicamente com os ideais progressistas da época (título, sub-título e primeira quadra).

Em casa, o estado de saúde da sua esposa começava a mostrar motivos para grande consternação e Simões Dias sofre com a antevisão de um final próximo e comove-se (segunda e terceira quadra).
Fora de casa sente-se cortejado pelas mulheres que o rodeiam mas mantém-se fiel à sua amada, não perdendo a esperança de poder voltar a partilhar com ela os bons momentos e as suas lutas políticas (quarta e quinta quadra).

Estes versos pranteiam o seu "exílio", quando aceitou transferir-se de Coimbra para Elvas, e se propôs aceitar um cargo de professor, cargo que já lhe tinha sido oferecido na Universidade, num contexto mais vantajoso, e ele havia recusado para ir viver com a sua esposa para Elvas (por amor e compaixão?). Seria o seu estado de saúde conhecido pelos médicos de Coimbra e suficientemente grave e irreversível para que apenas se aconselhasse um final de vida com paz, amor e tranquilidade e, nisso, também se tivesse engajado o poeta, seu amantíssimo marido?

Todo este poema está envolto numa linguagem figurativa e aparenta ser um grito de dor, de saudade, de revolta por alguma coisa que o poeta não aceitava, nem podia alterar. A última quadra, embora pareça estar completamente deslocada do contexto e ali haja sido colocada sem qualquer razão objectiva, exprime o desânimo de um jovem de 24 anos ao imaginar a morte de uma pessoa, incluindo a sua ou a da sua amada esposa, longe da sua terra e dos seus amigos!

No final da leitura do poema (e adivinhando os motivos que levaram o poeta a engajar-se naquela difícil e penosa missão) fica-se com a sensação de que o título "Morrinha brasileira" significa um misto de tristeza e melancolia, de moleza e apatia que provoca prostação e quebreira num indivíduo que se comprometeu numa missão (O engajado) mas que, desesperadamente, vai tomando consciência de que o fim está próximo (a morte, a curto prazo, da sua bem amada esposa). O seu casamento com Guilhermina da Conceição duraria apenas sete meses e meio!

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2. Como começou o mito do poeta querer ser enterrado na Benfeita

Por vezes, à força de se repetir muitas vezes a mesma ideia (seja ela verdadeira ou falsa) corremos o risco de perpetuá-la e torná-la um "mito".

O Dr. Mário Mathias, na sua publicação de 1969, então com 70 anos de idade, "Os Cemitérios da Benfeita" sugere, a propósito da última quadra deste poema, o seguinte:
"Parece mesmo que queria ser sepultado no nosso cemitério...", "Pelo menos é o que claramente se deduz..."

Diz-me a experiência de vida que "as coisas nem sempre são aquilo que parecem ser" e "aquilo que parece ser a umas pessoas pode não parecer a outras", pois o "parecer" é subjectivo e, como tal, têm relação directa com a quantidade de conhecimento adquirido sobre determinado assunto; logo, aquilo que "pareceu" ao Dr.Mário Mathias, com a informação de que dispunha, na altura, sobre a vida e a morte do poeta, podia não ter qualquer correspondência objectiva com aquilo que, verdadeiramente, o poeta pensaria sobre o assunto, depois.

Porém, o que nos parece curioso é que a resolução da retirada dos seus restos mortais e os do seu tio, o arcediago José Simões Dias, do jazigo de família, propriedade deste último, de Coimbra para o cemitério da Benfeita, tivesse tido como justificação uma simples dedução ou interpretação de uns versos que o poeta escreveu ainda muito jovem, numa altura conturbada da sua vida, e não da sua vontade, clara e inequivocamente expressa.

O "desejo" de ser sepultado no cemitério da Benfeita, sugerido pelo Dr.Mário Mathias, quanto a nós, deveria merecer o mesmo interesse e atenção que a penúltima quadra do poema "O teu lenço", este, sim, publicado por Simões Dias, nas suas "Peninsulares":

"Quanto mais me ponho a vê-lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p'ra cova."

São apenas figuras de estilo, ou de linguagem, que se utilizam para tornar uma mensagem mais ampla, mais expressiva e mais significativa, principalmente em poesia lírica, ilustrando um sentimento e enriquecendo uma descrição.

Ora, à data do falecimento do poeta Simões Dias, 03/03/1899, ainda faltavam 5 meses para o futuro Dr.Mário Mathias nascer, o que só viria a acontecer em 11/08/1899, portanto, qualquer referência à vida ou morte do poeta teria de ter como base uma pesquisa às notícias publicadas nos jornais da época ou noutras fontes escritas.

Assim sendo, escaparam ao conhecimento do Dr.Mário Mathias alguns factos que, quanto a nós, poderiam ser importantes para poder avaliar a importância de uma quadra de um poema banal, no contexto da vida pessoal de um poeta lírico e do seu verdadeiro interesse, ou última vontade (aos 24 anos de idade!) em querer ser realmente sepultado na sua aldeia natal.

Em "Os Cemitérios da Benfeita", ao afirmar que Simões Dias "foi inumado no cemitério do Alto de São João, no jazigo do seu íntimo e dedicado amigo Visconde Sanches de Frias, de Pombeiro da Beira, onde, julgamos, se encontra ainda", Mário Mathias cometeu algumas imprecisões, reveladoras de que alguns detalhes passaram ao seu conhecimento:

a) O corpo de Simões Dias não esteve no cemitério do Alto de São João, esteve sim, e provisoriamente, no jazigo particular do seu amigo Júlio César dos Santos, no Cemitério dos Prazeres.

b) Os restos mortais do Dr. Simões Dias foram trasladados para o seu jazigo de família no Cemitério da Conchada, em Coimbra, em 10/04/1900, ainda antes de Mário Mathias haver completado 1 ano de idade e, aos 70 anos, ainda o julgava em Lisboa, provavelmente abandonado pela família, em terra alheia.

A propósito daqueles versos e, provavelmente, tendo como argumento principal a interpretação pessoal que deles fez o Dr. Mário Mathias, em 1969, por causa do seu "parece mesmo" e do "claramente se deduz" é que os restos mortais do poeta Simões Dias foram transladados para o Cemitério da Corga, em 13/10/1999.
Ou seja, pelo que atrás foi dito, em 1969, o Dr.Mário Mathias, sem o saber, foi retirar do "lixo" uma quadra desprezada pelo seu autor, cem anos antes, atribuindo-lhe o significado de um desejo por concretizar e, em 1999, os benfeitenses, cheios de boa-vontade e respeito pela sua pessoa, não só foram "reacender um fogo extinto" como também o quiseram perpetuar!

Mausoléu dos Simões Dias

Não estamos, de forma alguma, contra o facto das ossadas do poeta Simões Dias terem sido trasladadas para o Cemitério da Benfeita, sua terra natal. Isso só nos enche de orgulho e satisfação e, qualquer dedução ou interpretação destas reflexões nesse enganoso sentido, estaria profundamente errada; embora, talvez, tivéssemos preferido para guarda dos seus restos mortais, o Panteão Nacional, (já agora!) o que lhe daria maior importância e destaque a nível nacional e não uma cobertura de tijolo burro sobre a qual passa e pisa, com a maior indiferença, (quase) toda a gente que visita o cemitério da Benfeita.

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3. Vontade do poeta em querer ser sepultado na Benfeita

Na verdade, uma coisa era o que parecia ao Dr.Mário Mathias, em 1969, em relação a uma pessoa; e outra, foi o que se decidiu, em 1999, (trinta anos depois) em relação a duas pessoas, tomando como argumento válido uma suposição apressada (eventualmente pouco amadurecida ou mesmo desactualizada), e nela tendo participado: a Câmara Municipal de Arganil; a Junta de Freguesia da Benfeita (que ofereceu um importante donativo de 100.000$00 para a reedição comemorativa das "Peninsulares"; a Liga de Melhoramentos da Freguesia da Benfeita (que organizou peditórios e recolha de donativos para pagar toda a obra do cemitério); a Editorial Moura Pinto e a Comissão do Povo da Benfeita, constituída pelos senhores: Carlos Dias (Carlos da Capela) e Carlos Alves Cerejeira, entre outros. Todos eles, sem qualquer sombra de dúvida, com as melhores intenções e, todos eles, merecedores da maior consideração e respeito! Mas, em minha opinião, todos eles, profundamente enganados!

De facto, qualquer pessoa bem informada se questionaria porque é que aquele alegado desejo do poeta, de querer ser enterrado na sua terra natal, sugerido por Mário Mathias, não constava da sua longa biografia, feita em vida pelo seu amigo e confidente, Visconde David Correia Sanches de Frias (1845-1922), se isso correspondesse efectivamente a uma vontade sua, nem constava no seu testamento ou últimas vontades, uma vez que a sua família manteve provisoriamente o seu corpo em Lisboa, durante um ano e o sepultou, definitivamente, em 10/04/1900, no Jazigo de Família, em Coimbra.

O Dr. Mário Mathias não estava informado pois pensava, em 1969, que os restos mortais do poeta ainda estivessem em Lisboa, abandonados pela família no jazigo de um amigo no cemitério do Alto de São João!

Sucede que, desde 1881, a família do poeta Simões Dias (da parte do seu tio) já tinha adquirido um jazigo duplo em Coimbra, no cemitério da Conchada. O terreno foi comprado em 31/05/1881, no talhão 12, e aí mandou erigir um jazigo com sarcófago, nº 56-58, com capacidade para 12 pessoas.
Por seu lado, o pai do poeta, António Simões Dias, ofereceu dois terrenos para o Cemitério da Corga, na Benfeita; um, para a sua construção inicial que se concluiu em 1894 (e onde viria a ficar sepultada a sua esposa Maria do Rosário Gonçalves, falecida em 1903) e, outro, para a sua primeira ampliação, que só viria a concretizar-se em 1911. Este último lote de terreno, segundo informação do Dr.Mário Mathias, teria sido doado a troco de um espaço para a construção de um mausoléu para si e para a sua família.
Porém, António Simões Dias, nascido nas Luadas, em 20/05/1817 viria a falecer na Benfeita em 18/01/1911, onde foi sepultado a 20 do mesmo, e essa obra nunca chegou a ser efectuada, nem por si nem pelos seus familiares. Claro que, quando isto aconteceu, já o poeta Simões Dias tinha falecido há muito, e também, há muito, o outro ramo da família Simões Dias, já tinha mandado construir o tal jazigo da Conchada, sendo esse o local escolhido pelo poeta, ou pela sua família, para a sua última morada.
Isto apenas pode justificar a razão pela qual o resto da família não se mostrou interessada na construção do mausoléu da Benfeita, uma vez que já dispunha de outro, em Coimbra. E, por isso, lá se fizeram sepultar, Maria Henriqueta, segunda mulher do poeta, Maria Arminda, Maria Alice e Raquel, bisnetas do poeta, por parte da sua única filha Judite de Meneses, entre outros.

Conclusão:

Mandar retirar os restos mortais do poeta Simões Dias e do seu tio, do jazigo que ostentava o seu nome, com base, apenas, na interpretação de uns versos, aparentemente, desprezados pelo próprio autor, pessoalmente, parece-me uma atitude um tanto curiosa, não querendo com isto levantar qualquer tipo de suspeição ou polémica. É apenas, e só, uma apreciação pessoal, depois de me ter interessado pelo tema. Simões Dias está na Benfeita e deixá-lo estar! Paz à sua alma!

Aspecto actual do jazigo
Aspecto actual do jazigo

Acresce dizer, para finalizar, que o "Jazigo do Arcediago José Simões Dias e sua família", no cemitério da Conchada, em Coimbra, apresenta um aspecto bastante degradado por ter sido deixado totalmente ao abandono durante décadas, embora ainda lá estejam 7 corpos, dos 12 que lá foram sepultados. Fica, agora, uma pergunta, aparentemente sem resposta: E o seu tio, nascido nas Luadas e falecido em 23/10/1903 num hospital em Berlim, onde foi buscar cura para um cancro na laringe, com 54 anos de idade, também desejava ser retirado do jazigo que ostentava o seu nome, em Coimbra, e ser sepultado na Benfeita? Infelizmente, para isso, não encontrei qualquer resposta!

Vivaldo Quaresma
31/08/2017

Veja também:
Comemorações do primeiro centenário da morte de Simões Dias