O
colhereiro da Benfeita
Por:
Vivaldo Quaresma
Data: Agosto 2014
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Consta
que existiu na antiga Bemfeyta um humilde colhereiro,
viúvo, que fazia gamelas de madeira e colheres
de pau. Vivia do seu trabalho e do que cultivava num
pequeno chão que uma tia entrevada da sua falecida
mulher lhe havia deixado em sorte.
Vivia com as suas três
filhas, já espigadotas, que o ajudavam nos trabalhos
do campo e cuidavam das ovelhas e cabrinhas que mantinha
numa loja da sua modesta casinha. Contava, ainda,
com a ajuda de uma cadelinha que lhe guardava o pequeno
rebanho, e de um macho que o acompanhava quando se
deslocava à Mata da Margaraça para cortar madeira
para o seu trabalho ou quando saía para as feiras
onde ia vender os seus produtos.
Certo dia, quando já
tinha a sua pequena carroça carregadinha de madeira,
apercebeu-se de um enorme buraco que existia no tronco
de um velho castanheiro, ainda anterior ao tempo em
que o Bispo de Coimbra era dono daquilo tudo, e achou
estranho que uma árvore daquele porte e idade pudesse
sobreviver com um buraco tão grande na base que mais
parecia ser a toca de um enorme javali.
Curioso, desceu da
carroça e enfiou corajosamente a cabeça no buraco
do castanheiro para ver o seu interior, empunhando
uma longa faca, que ele próprio havia fabricado, quando
era novo, para se proteger caso fosse atacado por
algum bicho. Mas a sua mão logo tremeu quando à frente
dos seus olhos viu a imagem de um mouro encantado,
dizendo-lhe com voz ameaçadora:
«Quem
invade o meu palácio com a vida há-de
pagar
SE EM TRÊS DIAS NÃO ME TROUXER
A primeira coisa que em sua casa encontrar!»
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Aflito, o colhereiro
subiu para a carroça, tremendo, e deixou que a alimária
o conduzisse a casa, serra abaixo, enquanto olhando
os céus, pedia ajuda à Divina Providência.
Ao aproximar-se de casa saiu-lhe ao caminho a sua
filha mais velha que, ao ouvir os gemidos da carroça,
logo percebeu que ela vinha carregadinha e que, portanto,
o seu pai estaria satisfeito, mas cansado e precisando
de ajuda.
Ao contrário do que
pensara, ao vê-la, o seu pai desfez-se em lamúrias
e contou-lhe a sua triste sorte. No dia seguinte,
decidida a defender a vida do pai, a filha mais velha
do colhereiro despediu-se das irmãs, sem lhes dizer
para onde ia, e dirigiu-se com o pai para a Mata da
Margaraça, onde foi entregue aos cuidados do mouro
encantado.
Ao receber a filha
do colhereiro, o mouro colocou-lhe à volta do pescoço
um magnífico cordão de ouro fino com uma chave que
abria todas as portas do palácio, advertindo-a da
existência de uma sala em que ela não poderia entrar
pois a sua vida dependeria disso.
O
colhereiro, sempre que ia buscar madeira à Mata, passava
pelo velho castanheiro encantado para saber notícias
da filha; mas, esta, um belo dia em que o mouro se
ausentou do palácio, foi ver o que havia no interior
da tal sala misteriosa, lá encontrando corpos de muitos
homens e mulheres com a cabeça decepada.
Horrorizada, abandonou o local às pressas, e voltou
a colocar a chave no cordão, não se apercebendo que
a chave tinha ficado manchada de sangue. Ao regressar
ao palácio o mouro apercebeu-se disso e, pela sua
comprovada desobediência, levou a filha mais velha
do colhereiro ao quarto maldito e castigou-a, cortando-lhe
a cabeça.
Quando o colhereiro
passou para saber notícias da filha, o mouro voltou
a fazer ouvir a sua voz autoritária:
«Sua filha
mais velha de saudades vai morrer
SE EM TRÊS DIAS NÃO ME TROUXER
Sua filha do meio, para companhia lhe fazer!»
Desanimado, o colhereiro
regressou à Benfeita com a carroça cheia de madeira,
mas rezando pela saúde da sua filha mais velha. Ao
chegar a casa foi recebido pela sua filha do meio,
a quem contou o sucedido e como a sua irmã mais velha
sentia a sua falta.
No dia seguinte, resignada, a irmã do meio despediu-se
da irmã mais nova, não lhe dizendo para onde ia e
lá seguiu com o pai para a Mata da Margaraça onde
iria fazer companhia à sua irmã mais velha, no palácio
do mouro encantado.
Ao recebê-la, o mouro
disse-lhe que a sua irmã mais velha tinha partido
em viagem e que ela deveria ficar a ocupar o seu lugar
enquanto não chegasse. Entregou-lhe, então, o cordão
de oiro fino que fora de sua irmã, o que a tornava
senhora do palácio, tendo-a avisado do risco que correria
se entrasse na sala proibida.
Um certo
dia de Verão, a filha do meio do
colhereiro, ao sentir que uma terrível dor de cabeça
não passava, pediu ao mouro que lhe fizesse um chá
de flores de Nardo e Carqueja, que ele deveria ir
colher na Mata, antes do nascer do Sol.
Enquanto o mouro não
chegava com as flores que pedira para o chá
milagroso, ela aproveitou para dar uma espreitadela
na sala proibida para ver se se distraía da dor que
tanto a apoquentava. Ao ver todos aqueles corpos e
cabeças decepadas ficou mais fria que um seixo da
ribeira, e tão grande foi o seu susto e emoção
quando viu o corpo e a cabeça da irmã mais velha que
logo começou a tremer como um borreguinho recém-nascido,
mal se aguentando nas pernas. Depois, logo percebeu
a razão que motivara a "ausência" tão
prolongada da irmã.
Saiu da sala como um
raio com a sua cabeça doendo ainda mais e tamanha
era a sua aflição que nem reparou na mancha de sangue
que tinha ficado agarrada à chave. Quando o mouro
chegou ao palácio ela reclamou com ele, dizendo-lhe
que havia demorado muito tempo e que as suas dores
ainda tinham aumentado. Ele, ao aperceber-se da mancha
de sangue na chave, logo lhe gritou:
«Suas dores
em breve vão passar
Quando do seu corpo, a cabeça eu separar!»
E, tal como fizera
à filha mais velha do colhereiro, o mouro malvado
degolou a infeliz criatura, apanhando o sangue para
dentro duma malga de barro e escondendo o seu corpo
dentro da sala maldita.
O
mouro andava muito irritado com a desobediência das
filhas do colhereiro cuja curiosidade as tinha levado
à morte e, quando este passou para saber notícias
delas, o mouro encantado, gritou-lhe:
«Suas filhas
de saudades vão morrer
SE EM TRÊS DIAS NÃO ME TROUXER
Sua filha mais nova, para companhia lhes fazer»
Desesperado, o colhereiro
regressa a casa e resolve contar à sua filha mais
nova o sucedido, pensando que as suas outras filhas
ainda estariam vivas. E assim sacrificou o seu próprio
bem-estar ao bem-estar de suas filhas, pensando que
elas ficariam melhor todas juntas.
Convencida das razões
evocadas pelo pai, a filha mais nova do colhereiro
estava contente por ir rever as suas irmãs
e logo foi entregue ao mouro encantado no dia seguinte.
Este contou-lhe a história que já havia contado à
sua irmã do meio, que as suas irmãs estavam a passeio
e que, enquanto não voltassem ela ficaria a substituí-las,
tendo-lhe entregue como prova de confiança o mesmo
cordão de ouro fino, a mesma chave e a mesma
severa proibição de não poder entrar na sala reservada.
A menina acatou e, durante algum tempo cuidou do mouro
encantado o melhor que pôde.
Como
a curiosidade parece ter sido um mal que corria no
sangue desta família, a filha mais nova do
colhereiro sentiu uma enorme vontade de ver o que
lhe "reservava" a tal sala "reservada"
e, num dia em que o mouro partiu para uma caçada ao
javali, decidida, meteu a chave à porta e avançou
sala adentro.
Estarrecida perante tal espectáculo que via, a filha
mais nova do colhereiro desfez-se em lágrimas perante
os corpos degolados das irmãs. Foi então que reparou
que perto de cada cabeça havia uma malga cheia de
sangue e que o sangue das irmãs ainda estava quente!
Num impulso divino agarrou na cabeça da irmã mais
velha e mergulhou-lhe a extremidade do pescoço na
malga que continha o seu sangue e encostou-a ao corpo
decepado. Foi então que o corpo inerte e frio da sua
irmã mais velha ganhou vida e cor, como se tivesse
despertado de um longo sono. Surpreendida com a descoberta
fez o mesmo, de seguida, à cabeça da
irmã do meio e logo as três irmãs se abraçaram,
riram e choraram de alegria.
Depois de alimentar
as suas irmãs e de muito conversarem, a irmã mais
nova voltou a esconder as suas irmãs na sala secreta,
ficando de as alimentar diariamente enquanto não engendrasse
uma forma de as tirar do palácio sem o mouro
perceber. Limpou muito bem a chave que trazia ao pescoço,
como as irmãs lhe haviam recomendado, e foi para a
sala esperar o mouro que já tardava.
Quando chegou da caçada,
o mouro tratou-a com muito carinho por ver que ela
lhe continuava a agradar e a obedecer, não desconfiando
de nada.
Tendo conquistado a
confiança do mouro encantado, a filha mais nova do
colhereiro da Bemfeyta, depressa ganhou o seu afecto
e dedicação, até dominar totalmente o seu coração.
Sem
a preciosa ajuda das filhas, o colhereiro começou
a ficar mais pobre e sem ninguém que dele cuidasse,
e já nem subia à Mata para saber das filhas!
Preocupada com o estado do pai, a filha mais nova
resolveu, então, mandar-lhe uma barrica de açúcar.
Para isso falou com o mouro, que concordou e logo
se dispôs a ser ele próprio a levá-la.
Foi então que a irmã mais nova libertou a irmã mais
velha da sala secreta e a meteu dentro da barrica
dizendo ao mouro que a levasse o mais rápido que pudesse
e que ela o iria ficar a ver durante o seu trajecto,
do alto do mirante.
Conforme combinado
com a irmã mais nova, durante o caminho, a
irmã mais velha dizia baixinho dentro da barrica:
«Eu bem te vejo, eu bem te vejo!»
E o mouro, pensando que era a irmã que ficara no mirante,
respondia a plenos pulmões: «Lindos olhos, meu
amor, que tanto vêem!»
Em chegando à casa
do colhereiro, o mouro deixou-lhe a barrica e regressou
ao palácio, onde era esperado com um grande sorriso
pela filha mais nova do colhereiro.
Alguns dias depois,
resolveu mandar ao pai uma nova barrica com feijão
tendo acordado com a irmã do meio o mesmo procedimento.
O mouro sentia-se
útil por ajudar o pai da sua jovem amada que estava
pobre e doente e, sem o saber, lá lhe entregou a sua
filha do meio que, dentro da barrica de feijão
lhe ia dizendo baixinho: «Eu bem te vejo, eu bem
te vejo!»
Do
plano da jovem fazia parte a sua própria fuga do palácio.
Assim, na semana seguinte, combinou com o mouro o
envio de uma nova barrica com milho. Depois, construiu
com trapos velhos e palha uma boneca do seu tamanho
que vestiu com os seus vestidos e colocou no mirante,
para que pudesse ser vista pelo mouro no seu trajecto.
Despediu-se, depois, do mouro dizendo-lhe que fosse
depressa, não parasse pelo caminho e que iria ficar
a vê-lo do mirante.
Mas não subiu ao mirante
e, sem o mouro perceber, meteu-se ela própria dentro
da barrica. No caminho ia dizendo baixinho: «Eu
bem te vejo, eu bem te vejo!»
E o mouro respondia a plenos pulmões: «Lindos olhos,
meu amor, que tanto vêem!»
Ao chegar à
casa do colhereiro o mouro deixou a barrica de milho
e regressou ao palácio. Quando foi abraçar a boneca
de palha que pensava ser a filha mais nova do colhereiro,
o mouro encantado caiu do alto mirante e, ao estatelar-se
no chão, desapareceu, juntamente com o palácio e o
velho castanheiro, desfazendo-se o encanto.
E o colhereiro da Bemfeyta
continuou feliz a trabalhar na sua arte e depressa
recuperou a sua saúde com a preciosa ajuda
das suas filhas queridas.
Historinha, historinha...
fugiu por aquela janelinha!
FIM
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