AUTOMÓVEIS  NA  BENFEITA

Fonte: A Comarca de Arganil
Data: 23/06/1933

O aparecimento, pela primeira vez,
de um automóvel na Benfeita
deu lugar a entusiásticas manifestações de regozijo popular

Os benfeitenses ausentes do torrão pátrio, que não tiveram a dita de assistir à chegada de um automóvel, pela primeira vez, à sua terra natal, devem ter experimentado uma sensação de contentamento ao lerem essa notícia no último número do nosso jornal.
Foi um acontecimento para a Benfeita aparecer ali um automóvel, aventura arriscada a que só se poderia abalançar quem tivesse pouco amor à vida.
A ideia nasceu de uma conversa havida entre o Branco, da Benfeita, e o Zé do Pedro, desta vila, tendo este dito que só iria à Benfeita de automóvel. E, daí, sempre que se encontravam, falavam no assunto.
O Zé do Pedro combina, então, com o Romão Jorge, que se apronta logo para a aventura.
- Se lá vai um carro de bois, também a minha «Foreta» lá há-de ir.
E foi.

No sábado, já altas horas da noite, após a recepção de um telefonema a comunicar que estavam tapados os buracos da estrada carreteira para o automóvel poder passar - pois nesse dia andara muito pessoal a trabalhar nesse serviço - combina-se a partida, que se assenta ser no dia imediato.
O «repórter» quer também um lugar no auto.
E no domingo, pelas 10:15, saía desta vila o carro, que, no caminho, consegue ultrapassar a camioneta do correio - prova evidente de que o nosso auto não era dos de ficar para traz...
Uma pequena demora em Coja para meter gasolina e perguntar pelo Branco e pelo sogro, o Antonino Gonçalves, que estava destinado seguirem connosco, mas já tinham retirado, dizendo que esperavam na Dreia.
Lá marchámos e às 10:55 passávamos na Portelinha - início do ramal da Benfeita - e foi um instante enquanto atingimos o pontão da Baralha, que tem andado em construção ultimamente.
Nas trincheiras abertas a seguir, o carro começa a passar com dificuldade, mas lá vai marchando.
Ao volante vai o hábil motorista Romão Jorge, mostrando a sua perícia.

Avista-se a Dreia e sentem-se estralejar foguetes. O povo daquela localidade começa a manifestar o seu regozijo pelo aparecimento do automóvel.
Acaba-se a estrada que se encontra aberta, e o carro, tem, agora, de se meter no caminho velho, e, descendo para o ribeiro de Baixo, em breve galga a encosta onde está situada a Dreia.
O carro parece um fantasma que vai por aqueles caminhos fora, a descobrir a Benfeita. O Romão representava o malogrado Sacadura Cabral e o Zé Jorge o Gago Coutinho.
Eram 11 horas quando chegámos à Dreia. Ali, é grande o entusiasmo do povo.
À entrada da povoação, aparece à frente do automóvel uma criatura a desviar-nos e a dizer:
- Olhem que o caminho é por aqui.
E vamos parar aonde não encontrámos saída. Era o largo do Eirado e fôra o correspondente d'A Comarca que nos obrigara a ir até ali, pois queria ver a histórico carro no coração da sua terra. J. Gama não esconde o seu contentamento.
Depois, oferece em sua casa, ao arrojado volante e companheiros, bolos e vinho. Levantam-se vivas.

Preparamo-nos para continuar a nossa odisseia. Neste instante, aparece o António Bernardo Branco - o inspirador do acontecimento. Vem afogueado de tanto correr, pois em virtude da hora adiantada, convencera-se de que o automóvel não iria. Tanto esperara, que desesperara. E ele lá tinha as suas razões. Sabia bem o perigo que representava a aventura, pois conhecia melhor a estrada do que o arrojado Romão.
O Branco não cabia em si de contente. Já ia a grande distância quando sentiu os foguetes a anunciar o aparecimento do carro na Dreia.
O Antonino, esse, então, já estava há muito na Benfeita, pois perdera mais cedo as esperanças.
O carro acha-se rodeado de povo. As mulheres chamam-lhe «espernaltudo» e dizem que ele não consegue atingir a Benfeita, por ser mais largo do que um carro de bois e haver quelhões muito apertados.
- No ribeiro de Cima, ainda ele deve passar - diz uma - porque o «mafarrico» leva as «calças arregaçadas», mas no quelhão da Barroca da Vinha é que hão-de ser elas...

O rev. arcipreste de Pomares, que passa a cavalo a caminho da Benfeita, onde vai prégar na festa da comunhão das crianças, diz que é uma temerosa aventura, das fantasiadas por Júlio Verne, aquela em que nos metemos, é lá segue na nossa frente a indicar-nos o caminho e a implorar a protecção divina para que não soframos qualquer percalço.
Urge partir, para chegarmos à Benfeita antes do inicio da festa religiosa. O motor começa a trabalhar com maior intensidade e a espantar os pardais das figueiras, e, com os balanços provocados pelo acidentado do caminho, parece uma «traquitana». Mas não é tal, pois é um carro de grande categoria, submetido a tão dura prova, que faz honra ao Ford...
Por entre quelhões apertados e à beira de precipícios perigosíssimos, lá vamos continuando a nossa jornada. Aonde o terreno das trincheiras é mole, ainda as rodas abriam passagem, mas onde havia fraga dum lado e de outro, é que o carro não andava nem para trás nem para diante. Os cubos das rodas lavravam a rocha, patenteando a sua resistência...
A certa altura, o carro não cabe na estrada. Alvitram uns que se tirem as rodas, outros que se passe o carro «ao colo», outros ainda dizem que basta tirar os cubos...
Mas o Romão, agarrado ao volante, exclama:
- Não senhor, não se faz nada disso. Isto fez-se para andar. É «Foreta» e portanto tem de «furar»...
E mete com as rodas por sobre a rocha, que galga com a rapidez do relâmpago. Ao lado, o abismo, uma enorme ribanceira, mas as mãos firmes do «chauffeur» vão timonando o carro com uma maestria inigualável.
Passa-se, com bastante dificuldade, o Cimo do Pau, quelhão de Deflôres, Pisão de Água de Maias, curva do Penedo do Pisão, etc.
Em baixo, na ribeira, aparecem os penedos, que lembram os de S. Pedro e S. Paulo, quando os aviadores Sacadura Cabral e Gago Coutinho foram descobrir o caminho aéreo para o Brasil.

E nós vamos a descobrir a Benfeita...
Na nossa frente, a serra da Deguimbra, de que mal nos apercebemos, pois os nossos olhos vão presos ao fundo da ribanceira, não vamos nós despenhar-nos nela.
A paisagem é interessante, mas quando a vamos apreciando com mais interesse, eis que um forte solavanco do carro nos desvia a atenção para o motorista, cujo pulso firme nos obriga a pôr para longe o receio de se afastar o carro do curso devido.
Ultrapassada a curva do Outeiro da Cruz, onde mal passa um carro de bois, vendo-se, a pique, talhado o precipício, divisamos, adiante, a Benfeita.
Começam a sentir-se os foguetes, que em girândolas são lançados ao ar.
Avista-se à Ponte Fundeira uma enorme multidão, que impaciente aguarda a chegada do automóvel. Agarrados ao carro e a correrem atrás dele, muitos rapazes, que não têm receio de ficar entalados.
Na Ponte Fundeira, é intenso o entusiasmo. Uma vozearia enorme. Palmas, vivas, de mistura com o estoirar de foguetes. Tudo quer subir para o carro e os estribos são ocupados por vários membros da comissão da estrada, António Dias, António Rosa, António F. Nunes (Péssimo), etc. Ninguém tem medo de ficar esmagado de encontro às paredes da estrada, nem arranhado pelas, silvas...
Junto da igreja paroquial, o carro tem de afrouxar a marcha, porque não pode romper. O povo da freguesia, na sua maioria, encontra-se ali, para assistir à festa da comunhão das crianças.
A filarmónica de Avô, que ali se encontra, executa um vibrante ordinário.
O entusiasmo é delirante, indescritível. Os vivas sucedem-se com calor e o «chauffeur» vê-se em sérias dificuldades para evitar qualquer atropelamento. Todos o felicitam e toda a gente mostra a sua alegria por verem peja primeira vez, na sua terra, um automóvel.
Eram 11 horas e meia quando ali chegámos. Um fotógrafo, que parecia mesmo estar à nossa espera, põe logo a objectiva em sentido e tira o primeiro cliché.

À chegada do automóvel à Benfeita, junto da igreja paroquial

Principalmente as pessoas idosas, sentem-se comovidas com o acontecimento.
O carro percorre em seguida as ruas da localidade, indo parar à praça de Simões Dias.
Pelo trajecto sucedem-se as manifestações e das janelas são lançadas flores.
A uma velhinha, ouvimos nós:
- Isto é um milagre. Louvado seja o Senhor, nunca julguei ver aqui uma coisa destas. E a andar sem ninguém a puxar...
Os comentários sucediam-se.
- Chegou primeiro o automóvel do que a estrada - dizia outro.
Os visitantes foram hóspedes dos srs. Antonino Gonçalves e seu genro, que lhes serviram duas belas refeições, regadas com delicioso néctar. De muitas pessoas receberam convites idênticos, mas como não eram «elásticos», tiveram de as deixar descontentes. Para outra vez será...
Já perto da noite, o Romão põe o carro em marcha, e, com uma valente carrada, percorre as ruas da localidade.
O sr. Leonardo Gonçalves Matias e sua esposa, que também tomam lugar no auto, obsequeiam-nos na sua casa do Tanque, à sombra da parreira...

Cliché tirado ao cabo da Benfeita, ao Tanque

Uma volta pelo largo do Areal, junto do edifício escolar, tiram-se vários clichés - que muitas pessoas adquirem para enviar para os ausentes - e eis-nos de abalada, que a noite aproximava-se a galope.

No largo do Areal, junto ao edifício escolar

Um grande cortejo se forma atrás do histórico carro, executando a filarmónica um sugestivo passo-doble.
E no meio das maiores aclamações, vendo-se os pontos altos da localidade e arredores, apinhados de gente, a observar o regresso, o «Ford» 7.529 arrancou na direcção de Arganil, com imensas saudades de todos os viajantes que vieram satisfeitos com a esplêndida viagem que fizeram e com a manifestação que lhes foi feita, prometendo voltar lá - quando a estrada for inaugurada.

DREIA (BENFEITA), 19 - Anteontem, sábado, fomos informados pelo nosso amigo António Bernardo Branco, da Benfeita, de que ontem teríamos aqui a visita de um automóvel, que seguiria depois para a Benfeita. Foi realmente uma noticia agradável, e ontem, logo de manhã, bastantes pessoas se postaram no largo do Pereiro à espera de verem surgir o auto. Mas, passaram as 8 horas, passaram as 9, passaram as 10 e nada aparecia. Até que fartos de esperar e com as esperanças perdidas, abandonaram o local. E nós fomos dos que também nos convencemos de que já não viria. Porém, perto das 10 horas ouve-se uma buzina.
- Lá vem ele, gritaram.
E dezenas de pessoas, cheias de contentamento e de curiosidade, correram novamente para o largo do Pereiro. E logo o divisámos lá em baixo, a chegar perto do pontão da Baralha. Enquanto se fizeram subir ao ar alguns foguetes e morteiros, o auto atingia esta povoação. Veio parar ao largo do Eirado, em frente da nossa modesta habitação.
Mais foguetes e mais morteiros foram lançados ao ar. Feitos os nossos cumprimentos aos amáveis visitantes, lá seguiram para a Benfeita. Daqui para diante, outra pena, muito melhor do que a minha o poderia fazer, dirá como a viagem decorreu. Só posso dizer mais que junto da noite aqui chegaram, de regresso a Arganil, todos muito bem dispostos. E dessa boa disposição até as raparigas da Dreia aproveitaram, porque o Romão Jorge, sempre amável e gentil, mandou subir para o carro as que lá couberam e enquanto os companheiros aqui ficaram uns momentos a trocar connosco as impressões da viagem, e seguiram, depois, a pé, levou-as em passeio até ao principio da estrada.
- Foi tão poucochinho, diziam elas ao terem de abandonar o carro que tão alegres momentos lhes proporcionou.
Mas não percam a esperança de tornarem a experimentar tão agradável sensação, porque o simpático Romão prometeu-nos que voltaria à nossa Dreia no seu já histórico carro. E nós, pelo pouco tempo que tivemos o prazer da sua presença, ficamos na impressão de que é homem de uma só palavra. Esperem, pois. E lá se foram para a sua Arganil os bons amigos, aos quais agradecemos as atenções que tiveram para connosco.

J.Gama

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