Os benfeitenses ausentes do torrão pátrio, que não
tiveram a dita de assistir à chegada de um automóvel, pela primeira vez,
à sua terra natal, devem ter experimentado uma sensação de
contentamento ao lerem essa notícia no último número do nosso jornal.
Foi um acontecimento para a Benfeita aparecer ali um
automóvel, aventura arriscada a que só se poderia abalançar quem
tivesse pouco amor à vida.
A ideia nasceu de uma conversa havida entre o Branco, da Benfeita, e o Zé
do Pedro, desta vila, tendo este dito que só iria à Benfeita de
automóvel. E, daí, sempre que se encontravam, falavam no assunto.
O Zé do Pedro combina, então, com o Romão Jorge, que se apronta
logo para a aventura.
- Se lá vai um carro de bois, também a minha «Foreta» lá
há-de ir.
E foi. No sábado, já altas horas da noite, após a
recepção de um telefonema a comunicar que estavam tapados os
buracos da estrada carreteira para o automóvel poder passar -
pois nesse dia andara muito pessoal a trabalhar nesse serviço -
combina-se a partida, que se assenta ser no dia imediato.
O «repórter» quer também um lugar no auto.
E no domingo, pelas 10:15, saía desta vila o carro, que, no caminho,
consegue ultrapassar a camioneta do correio - prova evidente de
que o nosso auto não era dos de ficar para traz...
Uma pequena demora em Coja para meter gasolina e perguntar pelo Branco e pelo sogro, o Antonino Gonçalves, que estava destinado seguirem connosco, mas já tinham retirado, dizendo que
esperavam na Dreia.
Lá marchámos e às 10:55 passávamos na Portelinha - início do ramal da
Benfeita - e foi um instante enquanto atingimos o pontão da Baralha, que tem
andado em construção ultimamente.
Nas trincheiras abertas a seguir, o carro começa a passar com dificuldade, mas lá vai marchando.
Ao volante vai o hábil motorista Romão Jorge, mostrando a sua perícia. Avista-se a Dreia e sentem-se estralejar foguetes. O povo daquela localidade começa a manifestar o seu
regozijo pelo aparecimento do automóvel.
Acaba-se a estrada que se encontra aberta, e o carro, tem, agora, de se meter no caminho velho, e, descendo para o ribeiro de Baixo, em breve galga a encosta onde está situada a Dreia.
O carro parece um fantasma que vai por aqueles caminhos fora, a descobrir a Benfeita. O Romão representava
o malogrado Sacadura Cabral e o Zé Jorge o Gago Coutinho.
Eram 11 horas quando chegámos à Dreia. Ali, é grande o entusiasmo do povo.
À entrada da povoação, aparece à frente do automóvel uma criatura a
desviar-nos e a dizer:
- Olhem que o caminho é por aqui.
E vamos parar aonde não encontrámos
saída. Era o largo do Eirado e fôra o correspondente d'A Comarca que nos
obrigara a ir até
ali, pois queria ver a histórico carro no coração da sua terra. J. Gama não esconde o seu
contentamento.
Depois, oferece em sua casa, ao arrojado volante e companheiros, bolos e vinho. Levantam-se vivas. Preparamo-nos para continuar a nossa odisseia. Neste instante, aparece o António
Bernardo Branco - o inspirador do acontecimento. Vem afogueado de tanto correr, pois em virtude da hora
adiantada, convencera-se de que o automóvel não iria. Tanto esperara, que
desesperara. E ele lá tinha as suas razões. Sabia bem o perigo que representava a
aventura, pois conhecia melhor a estrada do que o arrojado Romão.
O Branco não cabia em si de contente. Já ia a grande distância quando
sentiu os foguetes a anunciar o aparecimento do carro na Dreia.
O Antonino, esse, então, já estava há muito na Benfeita, pois perdera mais cedo as esperanças.
O carro acha-se rodeado de povo. As mulheres chamam-lhe «espernaltudo» e dizem que
ele não consegue atingir a Benfeita, por ser mais largo do que um carro de bois e haver
quelhões muito apertados.
- No ribeiro de Cima, ainda ele deve passar - diz uma - porque o
«mafarrico» leva as «calças
arregaçadas», mas no quelhão da Barroca da Vinha é que hão-de ser
elas... O rev. arcipreste de Pomares, que passa a cavalo a caminho da Benfeita, onde vai prégar na festa da comunhão das crianças, diz que é uma temerosa aventura, das fantasiadas por
Júlio Verne, aquela em que nos metemos, é lá segue na nossa frente a indicar-nos o
caminho e a implorar a protecção divina para que não soframos qualquer
percalço.
Urge partir, para chegarmos à Benfeita antes do inicio da festa religiosa.
O motor começa a trabalhar com maior intensidade e a espantar os pardais das figueiras, e, com os balanços provocados pelo acidentado do caminho, parece uma «traquitana». Mas não é tal, pois é um carro de grande categoria, submetido a tão dura prova, que faz honra ao Ford...
Por entre quelhões apertados e à beira de precipícios perigosíssimos, lá
vamos continuando a nossa jornada. Aonde o terreno das trincheiras é mole, ainda as rodas abriam
passagem, mas onde havia fraga dum lado e de outro, é
que o carro não andava nem para trás nem para diante. Os cubos das rodas lavravam a
rocha, patenteando a sua resistência...
A certa altura, o carro não cabe na estrada. Alvitram uns que se tirem as rodas, outros que se passe o carro
«ao colo», outros ainda dizem que basta tirar os cubos...
Mas o Romão, agarrado ao volante, exclama:
- Não senhor, não se faz nada disso. Isto fez-se para andar. É «Foreta» e
portanto tem de «furar»...
E mete com as rodas por sobre a rocha, que galga com a rapidez do relâmpago. Ao lado, o abismo, uma enorme ribanceira, mas as mãos firmes do
«chauffeur» vão timonando o carro com uma maestria inigualável.
Passa-se, com bastante dificuldade, o Cimo do Pau, quelhão de Deflôres, Pisão de
Água de Maias, curva do Penedo do Pisão, etc.
Em baixo, na ribeira, aparecem os penedos, que lembram os de S. Pedro e S. Paulo,
quando os aviadores Sacadura Cabral e Gago Coutinho foram descobrir o caminho aéreo para o
Brasil. E nós vamos a descobrir a Benfeita...
Na nossa frente, a serra da Deguimbra, de que mal nos apercebemos,
pois os nossos olhos vão presos ao fundo da ribanceira, não
vamos nós despenhar-nos nela.
A paisagem é interessante, mas quando a vamos apreciando com mais
interesse, eis que um forte solavanco do carro nos desvia a
atenção para o motorista, cujo pulso firme nos obriga a
pôr para longe o receio de se afastar o carro do curso devido.
Ultrapassada a curva do Outeiro da Cruz, onde mal passa um carro de bois, vendo-se, a pique, talhado o
precipício, divisamos, adiante, a Benfeita.
Começam a sentir-se os foguetes, que em girândolas são lançados ao ar.
Avista-se à Ponte Fundeira uma enorme multidão, que impaciente aguarda a chegada do automóvel.
Agarrados ao carro e a correrem atrás dele, muitos rapazes, que não têm receio de ficar entalados.
Na Ponte Fundeira, é intenso o entusiasmo. Uma vozearia enorme. Palmas, vivas, de mistura com o estoirar de
foguetes. Tudo quer subir para o carro e os estribos são ocupados por
vários membros da comissão da estrada, António Dias,
António Rosa, António F. Nunes (Péssimo), etc. Ninguém tem
medo de ficar esmagado de encontro às paredes da estrada, nem arranhado
pelas, silvas...
Junto da igreja paroquial, o carro tem de afrouxar a marcha, porque não
pode romper. O povo da freguesia, na sua maioria, encontra-se ali, para assistir
à festa da comunhão das crianças.
A filarmónica de Avô, que ali se encontra, executa um vibrante
ordinário.
O entusiasmo é delirante, indescritível. Os vivas sucedem-se com calor
e o «chauffeur» vê-se em sérias dificuldades para evitar qualquer
atropelamento. Todos o felicitam e toda a gente mostra a sua alegria por verem peja primeira vez, na sua terra, um automóvel.
Eram 11 horas e meia quando ali chegámos. Um fotógrafo, que parecia
mesmo estar à nossa espera, põe logo a objectiva em sentido e tira o primeiro
cliché.
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DREIA (BENFEITA), 19 - Anteontem, sábado,
fomos informados pelo nosso amigo António Bernardo Branco, da
Benfeita, de que ontem teríamos aqui a visita de um automóvel, que seguiria depois para a Benfeita. Foi realmente uma noticia agradável, e
ontem, logo de manhã, bastantes pessoas se postaram no largo do
Pereiro à espera de verem surgir o auto. Mas, passaram as 8 horas, passaram as
9, passaram as 10 e nada aparecia. Até que fartos de esperar e com as
esperanças perdidas, abandonaram o local. E nós fomos dos que também nos
convencemos de que já não viria. Porém, perto das 10 horas ouve-se uma
buzina.
- Lá vem ele, gritaram.
E dezenas de pessoas, cheias de contentamento e de curiosidade, correram novamente para o
largo do Pereiro. E logo o divisámos lá em baixo, a chegar perto do pontão da Baralha. Enquanto se fizeram subir ao ar alguns foguetes e morteiros,
o auto atingia esta povoação. Veio parar ao largo do Eirado, em frente da nossa
modesta habitação.
Mais foguetes e mais morteiros foram lançados ao ar. Feitos os nossos cumprimentos
aos amáveis visitantes, lá seguiram para a Benfeita. Daqui para diante, outra
pena, muito melhor do que a minha o poderia fazer, dirá como a
viagem decorreu. Só posso dizer mais que junto da noite aqui
chegaram, de regresso a Arganil, todos muito bem dispostos. E dessa boa
disposição até as raparigas da Dreia aproveitaram, porque o Romão
Jorge, sempre amável e gentil, mandou subir para o carro as que lá couberam e enquanto os companheiros aqui ficaram uns
momentos a trocar connosco as impressões da viagem, e seguiram,
depois, a pé, levou-as em passeio até ao principio da estrada.
- Foi tão poucochinho, diziam elas ao terem de abandonar o carro que tão alegres momentos lhes proporcionou.
Mas não percam a esperança de tornarem a experimentar tão
agradável sensação, porque o simpático Romão prometeu-nos que voltaria
à nossa Dreia no seu já histórico carro. E nós, pelo pouco tempo que tivemos o prazer da sua presença,
ficamos na impressão de que é homem de uma só palavra. Esperem, pois. E lá se
foram para a sua Arganil os bons amigos, aos quais agradecemos as atenções que tiveram para connosco.
J.Gama
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