CARLOS  DA  CAPELA

AQUI SE CONTA A HISTÓRIA DOS DOIS ALMOCREVES E DOS LOBISOMENS DO PENEDO ROLÃO E DO MILAGRE DO SINO OUVIDA NO SERÃO DA PRAÇA DA MINHA AVÓ ASSUNÇÃO POR CARLOS DA CAPELA E TEM GRAVURAS DE ALBERTO PÉSSIMO.

Os Dois Almocreves

Ainda o sol mal se adivinhava, passarinho em cima dos pinheiros húmidos da noite, já os dois almocreves, trazendo pela arreata os machos carregadinhos de presuntos, que no seu compassado andar adivinhavam os precipícios do carreiro por o terem sabido do muito caminharem por ali, jornadeavam em direcção à Benfeita.

Os caminhos atapetados de caruma amaciavam a jornada. Do alto uma pinha precipitava-se. Ao fundo e em alegre e divertida algazarra, a passarada, muito madrugadora, saía em bando das silveiras que bordejavam a ribeira. Ao longe, adivinhavam-se as tamanquinhas da tia Amabília que, muito cedinho, já trabucava para os lados do Espinho. O malho do avô, ferreiro, há muito ecoava.

De Santa Rita, o sino tagarela e familiar chamava meigamente, de mansinho, a vida e o dia, que não precisavam de credo na boca tão cheios eram de Nosso Senhor. Avistava-se, como pontos pequeninos, o casario que subia indisciplinado até se perder nas oliveiras do outeiro. Não tardaria o sino grande em convocar para a missa. Começava-se por esses tempos, quando o mundo não andava torto, assim o dia. Perto do Penedo Rolão, onde não se passava sem cuidados, não fossem acordar os bruxos e os lobisomens, e quantos bichos de muitas cabeças que ali pernoitavam, rompe o António a mudez da manhã.
- Ó Alberto, já se ouvem os sinos da Benfeita a tocar para a missa.
- Deixa-te de missas, resmungou, absorvido no valor do carregamento e no lucro dos negócios. Não brinques com coisas sérias, muitas graças de Deus e poucas graças com Deus, já dizia o bom Zé Pimpão, homem assisado e de entendimento, ledor de muitos jornais.

Por que deixa e por que torna, a conversa azedou e o António, como que a encurtar razões, lançou o desafio:
- Fazemos assim: vamos perguntar a quem nos aparecer o que pensa de irmos à missa. Se te derem razão, tiras-me os olhos e ficas com a carga e a montada.

Longe desta discussão, as bestas lá iam andando com outras distrações, lá muito delas, casmurrices que de tão mansinhas não as resolviam com coices, mas com cócegas na rabadilha que mais pareciam facécias de namorados nas escadinhas da avó Péssima enquanto debulhava ervilhas. Não tardou que se aproximasse um pequeno que por ali passava, indo a caminho do curral do Pisão, onde as cabras há muito esgadanhavam a porta de impaciência, fome e liberdade.
- Olá rapaz, o que pensas disto de irmos à missa?
- Qual missa, qual quê! Isso é lá para as senhoras Pombeiras que, já cambadas, não servem para mais nada!
- Este ainda é muito novo - comentou o António - não sabe o que diz. Perguntemos a pessoa mais velha e experimentada que neste ainda a vida anda de cueiros. O outro concordou.

Na subida teimosa de S. Bartolomeu, deslumbrava-se o vulto do macho do Tetas, que, carregadinho de colheres de pau, descia do Sardal, Aproximavam-se assim da Benfeita, observando com a minúcia de quem tem tempo e de quem conhece as rotinas...

O Mendonça afiava a navalhinha, sentado nas escadinhas da Perna de Pau; o tio Maçarocas filosofava para os lados da Teixugueira; na rua do Fundo o tio Artur Oliveira desafiava o Alberto para um chinguito; o senhor Eduardo Polícia afidalgava-se; na Praça, o António Péssimo já há muito convocava a filharada para a lida; da Argunte, chegava a voz da tia Dorinda:

Ai que lindo que é o manjerico!

Do lado da Cerdeira, os dois irmãos Cadetes carregavam a rês comprada; na esquina da casa dos Águedas, o Matias Velho enrolava o cigarro à espera do sol; o tio Augusto Linhaça fazia com asseio a sua malinha das injecções...

De pau na mão, cigarro pendurado a um canto da boca, boina ao lado, passa o moleiro direitinho ao moinho, que rolava pedra sobre pedra, interminavelmente, aquela geringonça maravilhosa que os homens souberam fazer em busca do pão. Música que era vida aquele roçar das pedras do moinho velho e o sussurro das águas caindo com força no rodízio feito com toda a mestria pelo meu tio Quinta-Feira.
- Meu caro amigo, bons dias lhe dê Deus, vamos nesta procura, continuava o António, o que nos diz de irmos à missa? Sem grandes vagares, o homem resmungou coisa lá para com ele e como quem não quer muitas conversas foi atirando quantos impropérios pôde.
- O moinho não espera, a água tem que ir para a levada, o milho quer água, a Eduarda daqui a pouco faz mais barulho que o zabumba no Carnaval. Deixem-se lá de missas e de santos e outros figurões donde não vem pão. Vivo bem sem essas benzeduras!

Com esta escapou-se para o moinho velho, à beira do ribeiro, encostado a uns canoilos de milho, barbados e tesos, que se erguiam muito empertigados esperando o sol loução e criador. Prontificava-se o Alberto para tirar os olhos ao companheiro quando este lhe pede mais uma oportunidade.
- O moleiro anda muito apressado, a vida consome-o, é o moinho, a água, a leira, o açude que esbarrou, a maquia... homem de pouco pensar, cara feita a enchó, não é obra de Deus. Com um aceno, anuiu já enfadado o Alberto.

Perto do Penedo Rolão, onde se avista por inteiro a Benfeita, prazenteira e airosa, fazendo justiça ao seu nome, um rapaz espigadote aproxima-se, ar de quem não gasta muito por ali as botas de elástico do tio sapateiro, com banca para a rua do outeiro e conversa para quem chega enquanto untava a sovela. Dobrada a curva, onde um pinheiro estreitava o caminho, o fidalgote de modos finos, a medo, foi dando os bons dias e explicando, sabe-se lá porquê, que tinha sido estudante em Coimbra e lera a gramática do Gomes de Moura e era tu cá tu lá com o poeta Simões Dias. Dirigia-se para Arganil à procura do Padre Lobo, mestre de muitas artes e sacerdote de muita fama, não fosse ele dirigente da filarmónica que espalhava fama e música.
- O senhor, que andou a aprender em Coimbra coisas que nós não entendemos bem, o que pensa disto de ir à missa?
O estudante ou fidalgo puxa do discurso inflamado do qual os dois almocreves não perceberam patavina.
- Ó senhor doutor, diga lá isso com palavras que possamos perceber.
- Ó meu senhor, ir à missa é perda de tempo, o mundo rege-se por outras leis.
Logo após as despedidas, - Vá por bom caminho, da Esculca lá ainda é um bom bocado e mais alguns améns costumeiros, ficaram a vê-lo desaparecer por entre a dobra do monte onde os castanheiros ensombram o caminho e as alminhas pedem-nos que nos lembremos de quem morreu.

Com uma navalhinha que trazia sempre consigo, com que cortava invariavelmente o queijo corno que comprara ao Rogério das Luadas, grande feirante, tira os olhos ao António e, ala que se faz tarde, com as montadas e tudo o resto, para a Benfeita. O negócio sorria-lhe: duas montadas, dois carregamentos e tudo para uma só bolsa.

No Penedo Rolão, ficou o António a dizer mal da vida e dos homens. Sem saber o que fazer, ali ficou a chorar a sua sorte até que a noite, a fome e o medo o cansaram. Já noite alta, que bem contou as badaladas do relógio, muito certinhas nas mãos do António Mina, encostou-se ao penedo e, deitado sobre ele, abandonou-se. Acordou sobressaltado. Por trás do penedo, chegavam-lhe vozes desbocadas.
- Hoje, dizia um, fiz com que um almocreve tirasse os olhos a outro e mal sabe ele que por trás deste penedo há umas ervas que basta esfregar os olhos com elas que logo lhe passa a cegueira.
- Eu hoje estanquei a água a Lisboa e só dizendo um pai-nosso ao pra trás ela continuará a correr em quanta fonte há, dizia este com voz mais cavernosa que nem os trovões quando soam do lado do Carcavão.
- E eu, dizia outro, todo de falas assobiadas, fiz um tal bruxedo na travesseira da rainha que ela não consegue dormir, só queimando as almofadas o feitiço desaparecerá.
A conversa corria entre risotas e piruetas que metiam susto até ao Luís da Mata que nunca tinha visto o medo, segundo se constava em toda a corda destes povos.

O almocreve, de ouvido encostado ao penedo, escutando, com a boca tão aberta como de altura tem a fraga da Pena, mal se tinha, tantos eram os suores que lhe corriam pelo corpo. No maior silêncio, que até a respiração o incomodava, foi esfregando os olhos com todas as ervas que existiam em redor. Esfrega uma e outra, busca debaixo das pedras e dos tojos, aos poucos começa a ver sombras e mais sombras, sombras que lhe bailavam em frente e a pouco e pouco tudo se ia aclarando. Recuperada a vista, pernas para que te quero! E sem dizer chus nem mus, moita carrasco! Águas abaixo, que quem não viu Lisboa não viu coisa boa certamente.

A cidade clamava nas ruas, as crianças e as mães choravam e os velhos morriam de sede. António prontificou-se a tudo resolver. Levam-no a uma fonte. Reza um padre-nosso ao pra trás, e logo jorrou água fresca em abundância. Aqui d'el rei, que este homem nos salvou! Vivas e mais vivas! O povo agradecido enche-lhe a bolsa de presentes e dinheiro. Do palácio, clamava o rei a pedir socorro para a rainha que há dias não dormia. O palácio andava em alvoroço. Não havia bruxa, nem curandeiro, nem padre que dessem remédio milagroso.

Vai o António ao palácio. Queima todas as almofadas do quarto da rainha. Milagre! A rainha de imediato sossega e adormece.

Viva o homem que salvou a rainha! Vivas e mais vivas! Daqui sai o almocreve com a bolsa farta. Agora, homem rico, volta de Lisboa mais caladinho que nem padre na confissão. Espera o compadre na volta do penedo, conhecia-lhe as voltas e sabia que por essas horas ali passava em direcção à serra, buscar lã ou vender novidades com que enchia o olho ao lapuz. Quando Alberto o viu ia morrendo de susto. Tu aqui! E já vês? O António conta-lhe o sucedido; os lobisomens do Penedo Rolão, a água das fontes, a grandeza de Lisboa, o dinheiro do rei. Era agora homem rico, ia comprar mais montadas, ampliar o negócio, comprar roupa nova, casa com sobrado e quinta com quanta água se quer. O outro ouvia pasmado e roído de inveja.

À noite, esconde-se com o escuro e de ouvido atento pranta-se encostado ao Penedo Rolão. Do outro lado, lá estavam reunidos os lobisomens de todos os povos de cem léguas em redor.

Abre o infernal consílio o Moural, que conta o que se passou: Lisboa em paz, a rainha salva, alguém ouviu tudo e tudo desfez... gente nos espreita e nos ouve. Em corrida macabra, saem todos à uma (mais feios, abrenúncia, que o diabo que está pintado na capela de Nossa Senhora das Necessidades) e, vasculhando à volta, que nem escapou a toca da raposa que ali escondia galinha roubada, encontraram o Alberto, que de medo não se tinha nas pernas mijadas. Com grande alarido, risotas e piruetas, tal qual a Custódia do circo da Junta antiga, fizeram uma pilha de lenha que não se podia comparar aos cepos de Natal no Largo da Capela. Toda a noite as chamas se mantiveram altas. E, com danças e gestos e carrancas que nunca por aqui se viu nem nunca mais se verá, fizeram do corpo do Alberto carvão mais negro que tição de cozinha de chabouco.

Ao outro dia, apregoado como o melhor carvão da Deguimbra, foi vendido ao preço da uva mijona no adro da capela da Nossa Senhora da Assunção, enquanto o sino, sem que ninguém fizesse por isso, tocava docemente, chamando para a missa o povo do lugar.

 

FIM

Reproduzido com autorização expressa do autor

Veja também:
Biografia do autor