Ainda
o sol mal se adivinhava, passarinho em cima dos pinheiros
húmidos da noite, já os dois almocreves, trazendo
pela arreata os machos carregadinhos de presuntos,
que no seu compassado andar adivinhavam os precipícios
do carreiro por o terem sabido do muito caminharem
por ali, jornadeavam em direcção à
Benfeita.
Os caminhos atapetados
de caruma amaciavam a jornada. Do alto uma pinha precipitava-se.
Ao fundo e em alegre e divertida algazarra, a passarada,
muito madrugadora, saía em bando das silveiras que
bordejavam a ribeira. Ao longe, adivinhavam-se as
tamanquinhas da tia Amabília que, muito cedinho, já
trabucava para os lados do Espinho. O malho do avô,
ferreiro, há muito ecoava.
De Santa Rita, o sino
tagarela e familiar chamava meigamente, de mansinho,
a vida e o dia, que não precisavam de credo na boca
tão cheios eram de Nosso Senhor. Avistava-se, como
pontos pequeninos, o casario que subia indisciplinado
até se perder nas oliveiras do outeiro. Não tardaria
o sino grande em convocar para a missa. Começava-se
por esses tempos, quando o mundo não andava torto,
assim o dia. Perto do Penedo Rolão, onde não se passava
sem cuidados, não fossem acordar os bruxos e os lobisomens,
e quantos bichos de muitas cabeças que ali pernoitavam,
rompe o António a mudez da manhã.
- Ó Alberto, já se ouvem os sinos da Benfeita a tocar
para a missa.
- Deixa-te de missas, resmungou, absorvido no valor
do carregamento e no lucro dos negócios. Não brinques
com coisas sérias, muitas graças de Deus e poucas
graças com Deus, já dizia o bom Zé Pimpão, homem assisado
e de entendimento, ledor de muitos jornais.
Por que deixa e por
que torna, a conversa azedou e o António, como que
a encurtar razões, lançou o desafio:
- Fazemos assim: vamos perguntar a quem nos aparecer
o que pensa de irmos à missa. Se te derem razão, tiras-me
os olhos e ficas com a carga e a montada.
Longe
desta discussão, as bestas lá iam andando com outras
distrações, lá muito delas, casmurrices que de tão
mansinhas não as resolviam com coices, mas com cócegas
na rabadilha que mais pareciam facécias de namorados
nas escadinhas da avó Péssima enquanto debulhava ervilhas.
Não tardou que se aproximasse um pequeno que por ali
passava, indo a caminho do curral do Pisão, onde as
cabras há muito esgadanhavam a porta de impaciência,
fome e liberdade.
- Olá rapaz, o que pensas disto de irmos à missa?
- Qual missa, qual quê! Isso é lá para as senhoras
Pombeiras que, já cambadas, não servem para mais nada!
- Este ainda é muito novo - comentou o António - não
sabe o que diz. Perguntemos a pessoa mais velha e
experimentada que neste ainda a vida anda de cueiros.
O outro concordou.
Na subida teimosa de S. Bartolomeu, deslumbrava-se
o vulto do macho do Tetas, que, carregadinho de colheres
de pau, descia do Sardal, Aproximavam-se assim da
Benfeita, observando com a minúcia de quem tem tempo
e de quem conhece as rotinas...
O
Mendonça afiava a navalhinha, sentado nas escadinhas
da Perna de Pau; o tio Maçarocas filosofava para os
lados da Teixugueira; na rua do Fundo o tio Artur
Oliveira desafiava o Alberto para um chinguito; o
senhor Eduardo Polícia afidalgava-se; na Praça, o
António Péssimo já há muito convocava a filharada
para a lida; da Argunte, chegava a voz da tia Dorinda:
Ai que lindo
que é o manjerico!
Do lado da Cerdeira,
os dois irmãos Cadetes carregavam a rês comprada;
na esquina da casa dos Águedas, o Matias Velho enrolava
o cigarro à espera do sol; o tio Augusto Linhaça fazia
com asseio a sua malinha das injecções...
De pau na mão, cigarro
pendurado a um canto da boca, boina ao lado, passa
o moleiro direitinho ao moinho, que rolava pedra sobre
pedra, interminavelmente, aquela geringonça maravilhosa
que os homens souberam fazer em busca do pão. Música
que era vida aquele roçar das pedras do moinho velho
e o sussurro das águas caindo com força no rodízio
feito com toda a mestria pelo meu tio Quinta-Feira.
- Meu caro amigo, bons dias lhe dê Deus, vamos nesta
procura, continuava o António, o que nos diz de irmos
à missa? Sem grandes vagares, o homem resmungou coisa
lá para com ele e como quem não quer muitas conversas
foi atirando quantos impropérios pôde.
- O moinho não espera, a água tem que ir para a levada,
o milho quer água, a Eduarda daqui a pouco faz mais
barulho que o zabumba no Carnaval. Deixem-se lá de
missas e de santos e outros figurões donde não vem
pão. Vivo bem sem essas benzeduras!
Com esta escapou-se
para o moinho velho, à beira do ribeiro, encostado
a uns canoilos de milho, barbados e tesos, que se
erguiam muito empertigados esperando o sol loução
e criador. Prontificava-se o Alberto para tirar os
olhos ao companheiro quando este lhe pede mais uma
oportunidade.
- O moleiro anda muito apressado, a vida consome-o,
é o moinho, a água, a leira, o açude que esbarrou,
a maquia... homem de pouco pensar, cara feita a enchó,
não é obra de Deus. Com um aceno, anuiu já enfadado
o Alberto.
Perto
do Penedo Rolão, onde se avista por inteiro a Benfeita,
prazenteira e airosa, fazendo justiça ao seu nome,
um rapaz espigadote aproxima-se, ar de quem não gasta
muito por ali as botas de elástico do tio sapateiro,
com banca para a rua do outeiro e conversa para quem
chega enquanto untava a sovela. Dobrada a curva, onde
um pinheiro estreitava o caminho, o fidalgote de modos
finos, a medo, foi dando os bons dias e explicando,
sabe-se lá porquê, que tinha sido estudante em Coimbra
e lera a gramática do Gomes de Moura e era tu cá tu
lá com o poeta Simões Dias. Dirigia-se para Arganil
à procura do Padre Lobo, mestre de muitas artes e
sacerdote de muita fama, não fosse ele dirigente da
filarmónica que espalhava fama e música.
- O senhor, que andou a aprender em Coimbra coisas
que nós não entendemos bem, o que pensa disto de ir
à missa?
O estudante ou fidalgo puxa do discurso inflamado
do qual os dois almocreves não perceberam patavina.
- Ó senhor doutor, diga lá isso com palavras que possamos
perceber.
- Ó meu senhor, ir à missa é perda de tempo, o mundo
rege-se por outras leis.
Logo após as despedidas, - Vá por bom caminho, da
Esculca lá ainda é um bom bocado e mais alguns améns
costumeiros, ficaram a vê-lo desaparecer por entre
a dobra do monte onde os castanheiros ensombram o
caminho e as alminhas pedem-nos que nos lembremos
de quem morreu.
Com uma navalhinha
que trazia sempre consigo, com que cortava invariavelmente
o queijo corno que comprara ao Rogério das Luadas,
grande feirante, tira os olhos
ao António e, ala que se faz tarde, com as
montadas e tudo o resto, para a Benfeita. O negócio
sorria-lhe: duas montadas, dois carregamentos e tudo
para uma só bolsa.
No
Penedo Rolão, ficou o António a dizer mal da vida
e dos homens. Sem saber o que fazer, ali ficou a chorar
a sua sorte até que a noite, a fome e o medo o cansaram.
Já noite alta, que bem contou as badaladas do relógio,
muito certinhas nas mãos do António Mina, encostou-se
ao penedo e, deitado sobre ele, abandonou-se. Acordou
sobressaltado. Por trás do penedo, chegavam-lhe vozes
desbocadas.
- Hoje, dizia um, fiz
com que um almocreve tirasse os olhos a outro
e mal sabe ele que por trás deste penedo há umas ervas
que basta esfregar os olhos com elas que logo lhe
passa a cegueira.
- Eu hoje estanquei a água a
Lisboa e só dizendo um pai-nosso ao pra trás
ela continuará a correr em quanta fonte há, dizia
este com voz mais cavernosa que nem os trovões quando
soam do lado do Carcavão.
- E eu, dizia outro,
todo de falas assobiadas, fiz
um tal bruxedo na travesseira da rainha que ela não
consegue dormir, só queimando as almofadas
o feitiço desaparecerá.
A conversa corria entre risotas e piruetas que metiam
susto até ao Luís da Mata que nunca tinha visto o
medo, segundo se constava em toda a corda destes povos.
 O
almocreve, de ouvido encostado ao penedo, escutando,
com a boca tão aberta como de altura tem a fraga da
Pena, mal se tinha, tantos eram os suores que lhe
corriam pelo corpo. No maior silêncio, que até a respiração
o incomodava, foi esfregando
os olhos com todas as ervas que existiam em
redor. Esfrega uma e outra, busca debaixo das pedras
e dos tojos, aos poucos começa a ver sombras e mais
sombras, sombras que lhe bailavam em frente e
a pouco e pouco tudo se ia aclarando. Recuperada
a vista, pernas para que te quero! E sem dizer chus
nem mus, moita carrasco! Águas abaixo, que quem não
viu Lisboa não viu coisa boa certamente.
A cidade clamava nas
ruas, as crianças e as mães choravam e os velhos morriam
de sede. António prontificou-se a tudo resolver. Levam-no
a uma fonte. Reza um padre-nosso
ao pra trás, e logo jorrou água fresca em abundância.
Aqui d'el rei, que este homem nos salvou! Vivas e
mais vivas! O povo agradecido enche-lhe a bolsa de
presentes e dinheiro. Do palácio, clamava o rei a
pedir socorro para a rainha que há dias não dormia.
O palácio andava em alvoroço. Não havia bruxa, nem
curandeiro, nem padre que dessem remédio milagroso.
Vai o António ao palácio.
Queima todas as almofadas do
quarto da rainha. Milagre! A rainha de imediato
sossega e adormece.
Viva o homem que salvou
a rainha! Vivas e mais vivas! Daqui sai o almocreve
com a bolsa farta. Agora, homem rico, volta de Lisboa
mais caladinho que nem padre na confissão. Espera
o compadre na volta do penedo, conhecia-lhe as voltas
e sabia que por essas horas ali passava em direcção
à serra, buscar lã ou vender novidades com que enchia
o olho ao lapuz. Quando Alberto o viu ia morrendo
de susto. Tu aqui! E já vês? O António conta-lhe o
sucedido; os lobisomens do Penedo Rolão, a água das
fontes, a grandeza de Lisboa, o dinheiro do rei. Era
agora homem rico, ia comprar mais montadas, ampliar
o negócio, comprar roupa nova, casa com sobrado e
quinta com quanta água se quer. O outro ouvia
pasmado e roído de inveja.
À noite, esconde-se com o escuro e de ouvido atento
pranta-se encostado ao Penedo Rolão. Do
outro lado, lá estavam reunidos os lobisomens de todos
os povos de cem léguas em redor.

Abre o infernal consílio o Moural, que conta o que
se passou: Lisboa em paz, a rainha salva, alguém ouviu
tudo e tudo desfez... gente nos espreita e nos ouve.
Em corrida macabra, saem todos à uma (mais feios,
abrenúncia, que o diabo que está pintado na capela
de Nossa Senhora das Necessidades) e, vasculhando
à volta, que nem escapou a toca da raposa que
ali escondia galinha roubada, encontraram
o Alberto, que de medo não se tinha nas pernas
mijadas. Com grande alarido, risotas e piruetas, tal
qual a Custódia do circo da Junta antiga, fizeram
uma pilha de lenha que não se podia comparar aos cepos
de Natal no Largo da Capela. Toda a noite as chamas
se mantiveram altas. E, com
danças e gestos e carrancas que nunca por aqui se
viu nem nunca mais se verá, fizeram do corpo do Alberto
carvão mais negro que tição de cozinha de chabouco.
Ao outro dia, apregoado
como o melhor carvão da Deguimbra, foi vendido ao
preço da uva mijona no adro da capela da Nossa Senhora
da Assunção, enquanto o sino,
sem que ninguém fizesse por isso, tocava docemente,
chamando para a missa o povo do lugar.
FIM
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