Tendo sido agraciado, pelo sr.
presidente da Junta, com um exemplar dos "Peninsulares", em edição
comemorativa do primeiro centenário da morte do poeta Simões
Dias, já há alguns dias que me preparava para lhe dedicar algum
tempo de leitura.
A história do poeta já eu conhecia bem (até já tinha
andado, com a minha mãe, em Lisboa, na Rua D.Estefânea, à busca de informações, na casa onde o poeta viveu parte de sua vida e veio a
falecer, sozinho, em 1899 - história triste e complicada). Infelizmente, ainda não
tinha tocado a sua obra mais famosa, os "Peninsulares", pois
dela só conhecia o nome e alguns poemas mais famosos. Uma espécie
de "Lusíadas", à moda da Benfeita.
Agora que a tinha à mão, pensei que não existia
melhor lugar para saborear a sua leitura do que a Fonte das
Moscas, lugar romântico e tão de acordo com o perfil do poeta.
Logo a seguir ao pequeno almoço, atravessei o Areal e
subi à Fonte das Moscas. O Verão que ainda estava para chegar, no
calendário, já há algum
tempo que se fazia sentir. Àquela hora da manhã, já se podia adivinhar mais
um dia de calor intenso. O cheiro dos pinheiros e do mato pairava
fortemente na atmosfera, deixando-me gozar uma paz e um sossego que... só
mesmo na Benfeita! Ali reinava o silêncio, apenas cortado pelo alegre
canto dos pássaros e o gotejar da bica da fonte. Infelizmente, aquilo
significava algo mais: desertificação.
Antes de me sentar, dei uma volta rápida pela vereda,
para apreciar a paisagem e tirar algumas fotografias. Aquele lugar mexia
comigo! Trazia-me recordações de quarenta e tal anos atrás. Com
o coração apertado e o sentimento à flor da pele, resolvi sentar-me ao
canto da já velha e gasta mesa de pedra e deixar-me absorver pela
leitura.
O poeta talvez me tivesse dito: - "A verdade é que
este cheiro que te embriaga é idêntico ao que se sentia, neste mesmo
lugar, há cento e quarenta e tal anos atrás".
- "Sim, o cheiro pode ter-se mantido, mas a paisagem
deve ter mudado bastante. Durante esse tempo a Benfeita cresceu muito.
Hoje tem muito mais casas e estradas alcatroadas!"
- "Pois", teria dito o poeta, "hoje tem
mais casas que no meu tempo, é verdade; mas, a maior parte delas estão
vazias. Naquele tempo havia muitíssimo mais gente do que hoje, mais
actividade, mais comércio, mais animação. E as estradas... essas, em
vez de trazerem mais gente, como se pensava, apenas serviram para nos
sangrar as que ainda cá existiam".
Enquanto "conversava" com o poeta, ia tentando
localizar, no livro, as quadras que se podiam ler nos azulejos que
estavam na parede da fonte e que o poeta dedicou à sua terra, por volta
de 1870, no poema "A volta do
peregrino", teria ele, 26
anos de idade.
Estando já a repetir, calmamente, a leitura deste
triste poema e a imaginar onde seria a localização do antigo e humilde
cemitério da Benfeita, junto à igreja, num local outrora isolado, como
era descrito, no poema, percebi que alguma coisa se mexia, um pouco mais
abaixo, no meio das pedras e da erva seca.
Pensei que fosse um qualquer pássaro à procura de comida, mas, quando
olhei, vi logo que estava errado. O rabo do pássaro não podia ser tão
comprido. Era uma cobra! E, a avaliar, pela parte visível, deveria ser de
bom tamanho. Agora, a Benfeita, para ser um paraíso completo, só faltava
ter uma Eva. Só que eu não estava com muita vontade de ser o novo Adão.
De quem seria a cobra? Perguntei-me, ainda aparvalhado. De repente, falou
mais alto o instinto e a lei da sobrevivência. Caí na real.
Num salto larguei o livro e apanhei duas pedras do chão. Zás... zás!
Nunca pensei que fosse, assim, tão fácil! Acho que lhe acertei logo à
primeira. Não percebi muito bem onde, mas foi o suficiente para a deixar
atordoada. Rapidamente peguei num pau que estava por ali perto e fui acabar o "trabalho".
Deveria ter pouco mais de um metro de comprimento. Não era muito grande,
mas o bastante para me deixar arrepiado.
Nunca gostei de histórias com cobras, principalmente
porque nem todas (as histórias) têm um final feliz. Esta acabou (a
cobra), cerca
de vinte minutos depois, num contentor de lixo, no Areal.
O dia-a-dia, na cidade, faz com que a gente já nem se lembre da
existência destes "bichinhos" sem dono. E é sempre bom
estarmos alerta quando vimos à aldeia, principalmente agora, que há
cada vez menos gente, por aqui, a cuidar das terras.
O resto da leitura dos famosos "Peninsulares " teria de ficar para
depois. O bichinho tinha-me sugado a concentração e, de repente, resolvi
mudar de ares.
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