HISTÓRIAS  DA  NOSSA  TERRA

Título: Visita indesejada
Autor: Vivaldo Quaresma
Data: 20/06/2001

Tendo sido agraciado, pelo sr. presidente da Junta, com um exemplar dos "Peninsulares", em edição comemorativa do primeiro centenário da morte do poeta Simões Dias, já há alguns dias que me preparava para lhe dedicar algum tempo de leitura.

A história do poeta já eu conhecia bem (até já tinha andado, com a minha mãe, em Lisboa, na Rua D.Estefânea, à busca de informações, na casa onde o poeta viveu parte de sua vida e veio a falecer, sozinho, em 1899 - história triste e complicada). Infelizmente, ainda não tinha tocado a sua obra mais famosa, os "Peninsulares", pois dela só conhecia o nome e alguns poemas mais famosos. Uma espécie de "Lusíadas", à moda da Benfeita.

Agora que a tinha à mão, pensei que não existia melhor lugar para saborear a sua leitura do que a Fonte das Moscas, lugar romântico e tão de acordo com o perfil do poeta.

Logo a seguir ao pequeno almoço, atravessei o Areal e subi à Fonte das Moscas. O Verão que ainda estava para chegar, no calendário, já há algum tempo que se fazia sentir. Àquela hora da manhã, já se podia adivinhar mais um dia de calor intenso. O cheiro dos pinheiros e do mato pairava fortemente na atmosfera, deixando-me gozar uma paz e um sossego que... só mesmo na Benfeita! Ali reinava o silêncio, apenas cortado pelo alegre canto dos pássaros e o gotejar da bica da fonte. Infelizmente, aquilo significava algo mais: desertificação.

Antes de me sentar, dei uma volta rápida pela vereda, para apreciar a paisagem e tirar algumas fotografias. Aquele lugar mexia comigo! Trazia-me recordações de quarenta e tal anos atrás. Com o coração apertado e o sentimento à flor da pele, resolvi sentar-me ao canto da já velha e gasta mesa de pedra e deixar-me absorver pela leitura.
O poeta talvez me tivesse dito: - "A verdade é que este cheiro que te embriaga é idêntico ao que se sentia, neste mesmo lugar, há cento e quarenta e tal anos atrás".
- "Sim, o cheiro pode ter-se mantido, mas a paisagem deve ter mudado bastante. Durante esse tempo a Benfeita cresceu muito. Hoje tem muito mais casas e estradas alcatroadas!"
- "Pois", teria dito o poeta, "hoje tem mais casas que no meu tempo, é verdade; mas, a maior parte delas estão vazias. Naquele tempo havia muitíssimo mais gente do que hoje, mais actividade, mais comércio, mais animação. E as estradas... essas, em vez de trazerem mais gente, como se pensava, apenas serviram para nos sangrar as que ainda cá existiam".

Enquanto "conversava" com o poeta, ia tentando localizar, no livro, as quadras que se podiam ler nos azulejos que estavam na parede da fonte e que o poeta dedicou à sua terra, por volta de 1870, no poema "A volta do peregrino", teria ele, 26 anos de idade.

Estando já a repetir, calmamente, a leitura deste triste poema e a imaginar onde seria a localização do antigo e humilde cemitério da Benfeita, junto à igreja, num local outrora isolado, como era descrito, no poema, percebi que alguma coisa se mexia, um pouco mais abaixo, no meio das pedras e da erva seca.
Pensei que fosse um qualquer pássaro à procura de comida, mas, quando olhei, vi logo que estava errado. O rabo do pássaro não podia ser tão comprido. Era uma cobra! E, a avaliar, pela parte visível, deveria ser de bom tamanho. Agora, a Benfeita, para ser um paraíso completo, só faltava ter uma Eva. Só que eu não estava com muita vontade de ser o novo Adão.
De quem seria a cobra? Perguntei-me, ainda aparvalhado. De repente, falou mais alto o instinto e a lei da sobrevivência. Caí na real.
Num salto larguei o livro e apanhei duas pedras do chão. Zás... zás! Nunca pensei que fosse, assim, tão fácil! Acho que lhe acertei logo à primeira. Não percebi muito bem onde, mas foi o suficiente para a deixar atordoada. Rapidamente peguei num pau que estava por ali perto e fui acabar o "trabalho".
Deveria ter pouco mais de um metro de comprimento. Não era muito grande, mas o bastante para me deixar arrepiado.

Nunca gostei de histórias com cobras, principalmente porque nem todas (as histórias) têm um final feliz. Esta acabou (a cobra), cerca de vinte minutos depois, num contentor de lixo, no Areal.
O dia-a-dia, na cidade, faz com que a gente já nem se lembre da existência destes "bichinhos" sem dono. E é sempre bom estarmos alerta quando vimos à aldeia, principalmente agora, que há cada vez menos gente, por aqui, a cuidar das terras.
O resto da leitura dos famosos "Peninsulares " teria de ficar para depois. O bichinho tinha-me sugado a concentração e, de repente, resolvi mudar de ares.